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O Anão

Mancava. A perna esquerda era mais curta da direita. O cabelo amarelo escuro, desgrenhado e eriçado. O seu corpo ondulante, em permanente desequilíbrio. Assobiava o anão enquanto passava pelo beco mais escuro da cidade. Da jaqueta verde pendia um relógio e, num dos bolso do casaco demasiado largo a dar-lhe pelos joelhos , podia-se adivinhar o volume de um livro ou caderno. A noite já ia alta e ele disse para si próprio que tinha de se despachar. Bateu a uma porta no local mais escuro, por detrás de um amontoado de caixotes do lixo. Um anjo abriu a porta e chamou outro com um rosnido. Seguiram os três e entraram na avenida onde os carros e os néons traziam uma espécie de vida à madrugada. Os anjos enormes, com os olhos irradiando uma luz vermelha, rosnavam baixinho, inquietos ao passarem pelas prostitutas e pregadores de esquina pregando o apocalipse iminente. O anão seguia, mancando, sempre a assobiar. Entraram num prédio de aspecto miserável onde se podia ler 'Hotel Bossa Nova' em luzes azuis e verdes. Passaram pelo recepcionista, que dormia. Subiram dois lances de escadas lentamente, com o anão a amaldiçoar a sua má sorte e a dificuldade do seu lento avanço. No chão, junto à porta onde se detiveram, um homem andrajoso caído no chão, murmurava palavras numa língua estranha sobre revoluções feitas com cravos. O anão pegou no caderno e confirmou ser ali o local certo. Bateu à porta. Os dois anjos, atrás dele, na escuridão do corredor mal iluminado, eram dois vultos gigantes cujos olhos faiscavam e cujos grunhidos ecoavam pelas paredes dilaceradas por graffitis. A porta abriu-se e um velho de gabardina, segurando uma pesada mala cheia de autocolantes, disse que estava pronto. Os anjos começaram a piar e deitaram-se no chão, submissos aos pés do velho que os afagou e lhes chamou nomes ternos. O anão fez uma vénia e disse se o senhor seu deus se tinha divertido na sua breve fuga. O velho respondeu que iria fugir outra vez. O anão disse que sim, sorrindo. Os quatro saíram do hotel e o velho deus, subindo para as costas de um anjo, desapareceu no céu rosado em que o Sol começava a despontar. O anão espreguiçou-se e disse para si mesmo que esta tinha sido uma boa noite. O outro anjo desapareceu quando ele lhe disse que podia ir, que estava liberto. O anão seguiu pela rua, assobiando, enquanto fazia um visto com um lápis roído e mínimo no nome de deus no seu caderno.

Blog: Transmissão Especial
Autor: João Leal
2005 dC

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