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Sob o domínio da arte, da crueldade da boa arte



(...) a criação de arte verdadeiramente boa requer um grau de concentração, compromisso, dedicação e preocupação - de egoísmo, numa palavra - que mantém o artista distante, e que faz dele não exactamente um fora-da-lei, mas torna o próprio numa lei.
(...)

Dickens era um reformador social, um defensor dos pobres, um homem que usou do próprio dinheiro para contruir uma escola e um abrigo para prostitutas (mesmo que, como sugere a nova biografia escrita por Claire Tomalin, ele próprio fosse um cliente entusiasta das meninas da rua). A sua popularidade era tal que em meados do século XIX, era provavelmente a figura mais amada de Inglaterra, talvez até mais popular do que a Rainha.
Dickens teve uma infância infeliz e estava determinado a fazer melhor com os seus próprios filhos. E no entanto ele era, quando muito, um pai indiferente, desorientado e frequentemente negligente, e um marido ainda pior. O seu casamento com Catherine Hogarth foi provavelmente um erro desde o começo, e à medida que ela foi engordando e adoecendo (dez gravidezes não devem ter ajudado muito), ele foi ficando cada vez mais aborrecido e ressentido. O divórcio não era uma opção e por isso, baniu  sua mulher de casa e literalmente "escreveu-a" para fora da sua vida, anunciando falsamente na sua revista, Household Words (Palavras Domésticas), que ela era uma mãe negligente e que os filhos não a suportavam. Ao descrever este período das suas vidas, a sua filha Katie escreveu: "Nada pode superar a miséria e a infelicidade do nosso lar".
Simultaneamente, Dickens escrevia romances incomparáveis, fazia digressões como palestrante, encenava peças de teatro amador. Ele era um homem de uma energia tão prodigiosa que ao fim do dia, incapaz de adormecer, era capaz de caminhar mais de 30 km. Esta é a figura que viémos a adorar - o Dickens de um coração imenso, infinitamente criativo - e se não tivéssemos tido Great Expectations ou Little Dorrit, teríamos sentido as nossas vidas tristemente diminuídas.
Mas e se um dos seus filhos - digamos, o Edward, de 16 anos, que Dickens enviou para a Austrália e nunca mais o viu, por ele ser complicado e parecer pouco adequado para uma carreira em Londres - perguntasse a pergunta do filho de Hemingway: o que é que pensas ser mais importante, as histórias ou as pessoas? Por um pai mais compreensivo, provavelmente Edward abdicaria de Great Expectations, Little Dorrit e mais uns quantos. Valeria a pena? Edward gostaria de saber.
No entanto, para Dickens, essa não é uma pergunta que possa ser respondida. Ele não poderia não escrever, da mesma forma que não poderia não respirar. Ele estava sob o domínio da arte, e a crueldade da arte - da boa arte, pelo menos - é que requer dos seus praticantes que se mantenham embrulhados em si mesmos de uma forma que acaba por ser um pouco inumana.

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