Avançar para o conteúdo principal
Por volta dos doze anos de idade, dei de caras com um livro que o meu pai guardava numa estante do seu escritório. Chamava-se “O Dinossauro Excelentíssimo”. Peguei no livro porque acreditava tratar-se de um livro sobre dinossauros. O meu pai nada fez para impedir que o lesse. Lembro-me vagamente de me ter dito qualquer coisa do género “lê e depois diz-me o que achaste”. Deve-o ter dito, certamente, com um sorriso. É claro que abandonei o livro passado pouco tempo. Tudo era difícil: as expressões, as palavras e, acima de tudo, o sentido do que estava escrito. Mais tarde, por volta de 90, voltei a pegar no "Dinossauro". Não posso afirmar, para benefício do argumento, que reli o livro. Em bom rigor, não o tinha lido. Assim como não posso afirmar que marquei na minha agenda, aos doze anos, que no dia x do mês y de 1990 voltaria a pegar no livro. Mas posso afirmar que o contacto com aquele livro despertou em mim a curiosidade de, mais tarde, o ler. Aquele passou a representar o mundo complexo mas, ao mesmo tempo, apelativamente misterioso. Conto este episódio porque sei que a forma despreocupada e livre como sempre me deixaram folhear qualquer livro que fosse em qualquer idade - produto, por sua vez, de uma orientação literária absolutamente desorientada/caótica por parte dos meus pais - despertou em mim a curiosidade de ler, mesmo quando estranhava o que ia lendo. O estranhar levou-me sempre a pensar que havia um difuso mas certamente admirável mundo ao qual eu não tinha acesso - mas, acreditava, um dia haveria de ter. É natural que uma parte do gosto, mas igualmente do esforço, em saber e conhecer mais, passou também pela ideia, ainda que mais ou menos inconsciente, de que portas outrora fechadas se abririam.
O exemplo do “Dinossauro Excelentíssimo” é, aliás, extremo. Pedir a uma criança de doze anos que «apanhe» as entrelinhas do que está escrito no livro de Cardoso Pires, é o mesmo que pedir a José Sócrates que perceba o peso ou o ónus de um “mutatis mutandis” na aplicação de uma política keynesiana aos dias de hoje. Moby Dick é bem mais pacífico porque, ainda que superficialmente, não deixa de ser um livro de aventuras perfeitamente cognoscível a uma criança de dez ou doze, ou a um adolescente de catorze ou dezasseis. Pensar-se que uma leitura de Moby Dick aos treze anos arruma em definitivo o livro (ou seja, queima-se ali a única oportunidade de leitura da obra), não tem o mais leve fundamento. Assim como é ridículo pensar-se que a leitura naquela idade «formata» para sempre a percepção ou o entendimento da «mensagem» da obra. Os “Maias” que li aos dezasseis eram bem diferentes dos "Maias" que li aos trinta (e não houve conflito de espécie alguma entre uma e outra experiência). A probabilidade de uma leitura aos doze, catorze ou dezasseis contribuir para a releitura aos trinta ou quarenta, é bem maior que a probabilidade da ausência de leitura aos doze, catorze ou dezasseis contribuir para a primeira das leituras numa idade maior. Por razões óbvias, retirei da equação a existência de intelectos que jamais perceberão esta ou aquela obra, seja aos dez, trinta ou oitenta.

Comentários

Mensagens populares deste blogue

Una elocuente ilustración del lugar que desempeña la teología en la resistencia de la Iglesia al condicionamento social la provee el ejemplo de la iglesia confessante en su lucha contra el Nacional-socialismo en la Alemanha de Hitler. En palabras de E.H. Robertson, la resistencia cristiana a Hitler 'requeria una comprensión de la fe cristiana, una cuidadosa discriminación entre lo importante y lo trivial. Los que se resistían tenían que saber por quê valía la pena morir'. Uma ilustração eloquente do papel que a teologia desempenha na resistência da Igreja ao condicionamento social vem do exemplo da igreja confessional na sua luta contra o Nacional Socialismo na Alemanha de Hitler. Nas palavra de E.H. Robertson, a resistência cristã a Hitler "requeria uma compreensão da fé cristã, uma cuidadosa discriminção entre o que é importante e o que é trivial. Os que resistiam tinham de saber as coisas pelas quais valia a pena morrer".

Dois lados da hospitalidade

(…) a receptividade é apenas um lado da hospitalidade. O outro lado igualmente importante é o confronto. Ser receptivo ao estranho não significa de maneira nenhuma que devamos ser “ninguéns” neutros. A verdadeira receptividade exige confronto, pois o espaço só pode ser acolhedor quando existem claras, e fronteiras são limites entre os quais definimos a nossa posição. O confronto é o resultado da presença articulada, a presença dentro dos limites, do anfitrião para o hóspede, pela qual esse oferece como ponto de orientação e quadro de referência. Não estamos sendo hospitaleiros quando deixamos os estranhos em nossa casa para que a usem como quiserem. Uma casa vazia não é hospitaleira. De facto, logo se torna uma casa assombrada, fazendo o estranho sentir-se desconfortável. Em vez de perder os medos, o hóspede fica ansioso, suspeita de qualquer ruído vindo do sótão ou do porão. Para sermos realmente hospitaleiros, devemos não apenas receber os estranhos, mas também confrontá-los com uma
Nosso medo de ficar sozinhos impulsiona-nos para o barulho e para as multidões. Conservamos uma constante torrente de palavras mesmo que sejam ocas. Compramos rádios que prendemos ao nosso pulso ou ajustamos aos nossos ouvidos de sorte que, se não houver ninguém por perto, pelo menos não estamos condenados ao sliêncio. T.S. Eliot analisou muito bem a nossa cultura quando disse: ‘Onde deve ser encontrado o mundo em que ressoará a palavra? Aqui não, pois não há silêncio suficiente.’

Veio para ver, mas não comprar

During those days Fingerbone was strangely transformed. If one should be shown odd fragments arranged on a silver tray and be told, “That is a splinter from the True Cross, and that is a nail paring dropped by Barabbas, and that is a bit of lint from under the bed where Pilate’s wife dreamed her dream,” the very ordinariness of the things would recommend them. Every spirit passing through the world fingers the tangible and mars the mutable, and finally has come to look and not to buy. So shoes are worn and hassocks are sat upon and finally everything is left where it was and the spirit passes on, just as the wind in the orchard picks up the leaves from the ground as if there were no other pleasure in the world but brown leaves, as if it would deck, clothe, flesh itself in flourishes of dusty brown apple leaves, and then drops them all in a heap at the side of the house and goes on. So Fingerbone, or such relics of it as showed above the mirroring waters, seemed fragments of the quotidi

O homem nuclear

O homem nuclear é aquele que compreende que os seus poderes criativos contêm o potencial da autodestruição. Ele apercebe-se de que, nesta era nuclear, vastos e novos complexos industriais permitem ao homem produzir numa hora o que outrora levava anos a produzir, mas compreende igualmente que estas mesma indústrias perturbaram o equilíbrio ecológico e, através da poluição atmosférica e sonora, contaminaram o seu próprio ambiente. O homem nuclear conduz automóveis, ouve telefonia e vê televisão, mas perdeu a capacidade de compreender o funcionamento dos instrumentos de que se serve. Vê à sua volta uma tal variedade e abundância de objectos úteis que a escassez já não lhe motiva a vida, mas ele anda simultâneamente às apalpadelas à procura de uma direcção e em busca de sentido e de objectivo. Durante este processo, ele sofre do conhecimento inevitável de que o seu tempo é o tempo em que se tornou possível ao Homem destruir não só a vida mas também a possibilidade de renascimento, não só

A sombra da cruz sobre o seu futuro

Conhece o leitor o quadro de Holman Hunt, líder da Irmandade Rafaelita, intitulado “A Sombra da Morte”? ele representa o interior da carpintaria de Nazaré. Jesus, nu até à cintura, está em pé ao lado da serra. Seus olhos estão erguidos ao céu, e seu olhar é de dor ou de êxtase, ou de ambas as coisas. Seus braços também estão estendidos acima da cabeça. O sol da tarde, entrando pela porta aberta, lança, na parede atrás dele, uma sombra negra em forma de cruz. A prateleira de ferramentas tem a aparência de uma trave horizontal sobre a qual as suas mãos foram crucificadas. As próprias ferramentas lembram os fatídicos prego e martelo. Em primeiro plano, no lado esquerdo, uma mulher está ajoelhada entre as aspas de madeira. Suas mãos descansam no baú em que estão guardadas as ricas dádivas dos magos. Não podemos ver a face da mulher, pois ela encontra-se virada. Mas sabemos que é Maria. Ela parece sobressaltar-se com a sombra em forma de cruz que seu filho lança na parede. (…) Embora a i
O que é o amor, em concreto? Não perguntes o que é sem este «em concreto», acabarás com arbitrariedades verbais, piedades, coisas vãs. O que é o amor em concreto, concreto como cimento, como betão, concreto como uma pedra, imagem tão diferente do complicado e impudico coração? O verbete «amor» fala em emoção, estética, ideologia, doença, e nada disso interessa agora mas apenas o amor em concreto, corpos, cortinas, cheiros, cães, o amor que com ou sem aspas mostramos aos outros para que acreditemos também, vejam a minha felicidade, a minha normalidade, a minha desistência. Com o teu amor concreto o mundo encontra uma base estável no meio dos vendavais. E agora suportas todas as decepções. O amor é um vício, uma gangrena, faz mais falta um amor concreto, hábitos, fotos, impostos, torneiras, é contra o amor que o amor concreto triunfa, onde estavas, amor, quando foste preciso, quando ela precisava, ao passo que eu estive sempre aqui ao seu lado? Que importam as tuas escaladas, os teus me
Para as pessoas habituadas a viver no domínio do subjectivo, as diferenças de doutrina não importam. O fim deles é formar a síntese. Só assim, para mim, se explica que Karl Barth pudesse, como fez no Concílio Ecuménico, em Amesterdão, dizer certas verdades fortes sobre ritos católico-romanos, sem cessar, no entanto, de falar da Igreja romana como sendo uma Igreja autêntica. (…) Uma vez que se penetra do mundo subjectivo, sem princípio objectivo de autoridade, e sobretudo com a tal concepção de síntese, não se pode considerar as diferenças de ordem teológica de outra forma senão como um “patamar” permitindo atingir uma verdade superior. Assim temos direito de afirmar que na realidade estes homens montaram a mais hábil das contrafacções do Cristianismo verdadeiro. Eles encontram-se, certamente, ainda mais afastados de nós que a Igreja católica-romana e mesmo que os modernistas.