Não sei se durmo, ou se só sinto que durmo. Não sonho o intervalo certo, mas reparo, como se começasse a despertar de um sono não dormido, os primeiros ruídos da vida da cidade, a subir, como uma cheia do lugar vago, lá em baixo, onde ficam as ruas que Deus fez. São sons alegres, coados pela tristeza da chuva que há, ou, talvez, que houve — pois a não oiço agora -. Só o cinzento excessivo da luz frinchada até mais longe que me dá, nas sombras de uma claridade frouxa, insuficiente para a altura da madrugada, que não sei qual é... São sons alegres e dispersos e doem-me no coração como se me viessem, com eles, chamar a um exame ou a uma execução. Cada dia, se o oiço raiar da cama onde ignoro, me parece o dia de um grande acontecimento meu que não terei coragem para enfrentar. Cada dia, se o sinto erguer-se do leito das sombras, com um cair de roupas da cama pelas ruas e pelas vielas, vem chamar-me a um tribunal. Vou ser julgado em cada hoje que há. E o condenado perene que há em mim agarra-se ao leito como à mãe que perdeu, e acaricia o travesseiro como se a ama o defendesse de gentes.
A sesta feliz do bicho grande à sombra de árvores, o cansaço fresco do esfarrapado entre a erva alta, o torpor do negro na tarde morna e longínqua, a delícia do bocejo que pesa nos olhos frouxos tudo que acaricia o esquecimento, sono, o sossego do repouso na cabeça, encostando, pé ante pé, as portas da janela na alma, o afago anónimo de dormir.
Dormir, ser longínquo sem o saber, estar distante, esquecer com o próprio corpo; ter a liberdade de ser inconsciente, um refúgio de lago esquecido, estagnado entre frondes árvores, nos vastos afastamentos das florestas.
Um nada com respiração por fora, uma morte leve de que se desperta com saudade e frescura, um ceder dos tecidos da alma à massagem do esquecimento.
Ah, e de novo, como o protesto reatado de quem se não convenceu, oiço o alarido brusco da chuva chapinhar no universo aclarado. Sinto um frio até aos ossos supostos, como se tivesse medo. E agachado, nulo, humano a sós comigo na pouca treva que ainda me resta, choro. Sim, choro, choro de solidão e de vida, e a minha mágoa fútil como um carro sem rodas jaz à beira da realidade entre os estercos do abandono. Choro de tudo, entre perda do regaço, a morte da mão que me davam, os braços que não soube como me cingissem, o ombro que nunca poderia ter... E o dia que raia definitivamente, a mágoa que raia em mim como a verdade crua do dia, o que sonhei, o que pensei, o que se esqueceu em mim — tudo isso, numa amálgama de sombras, de ficções e de remorsos, se mistura no rastro em que vão os mundos e cai entre as coisas da vida como o esqueleto de um cacho de uvas, comido à esquina pelos garotos que o roubaram.
O ruído do dia humano aumenta de repente, como um som de sineta de chamada. Estala adentro da casa o fecho suave da primeira porta que se abre para viverem. Oiço chinelos num corredor absurdo que conduz até meu coração. E num gesto brusco, como quem enfim se matasse, arrojo de sobre o corpo duro as roupas profundas da cama que me abriga. Despertei. O som da chuva esbate-se para mais alto no exterior indefinido. Sinto-me mais feliz. Cumpri uma coisa que ignoro. Ergo-me, vou à janela, abro as portas com uma decisão de muita coragem. Luze um dia de chuva clara que me afoga os olhos em luz baça. Abro as próprias janelas de vidro. O ar fresco humedece-me a pele quente. Chove, sim, mas ainda que seja o mesmo é afinal tão menos! Quero refrescar-me, viver, e inclino o pescoço à vida, como a uma canga imensa.
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Fernando Pessoa
1935 dC
Editora: Revista Visão
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