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Há uma sala do trono maior do que o universo que habitamos. No meio de uma escuridão sem alívio, ( ou de uma luz sem sombras, dependendo de quem está se aproximando do trono), no centro absoluto de todos os universos, há um trono de pura luz. Ou de árvores vivas. Ou de mármore. Ou de gelo. Ou de cabeças e corações e olhos sangrentos de um animal que nunca ninguem viu vivo. Ninguem sabe do que é feito o trono porque não existem duas criaturas em existência que vêem o trono da mesma maneira. Os seres que habitam a sala do trono são pequenos, minúsculos em comparação com o trono e aquele que se assenta sobre ele- como crianças em relação a seu pai, como formigas em relação a uma montanha, como moléculas em relação ao sistema solar.
O que senta sobre o trono, todos já viram, mas nenhum sabe descrever. Nenhum santo ou criatura exaltada ou espírito antigo saberia começar a descrever sua aparência- ninguem nem viu seu rosto- embora existam rumores que alguns anfíbios comeram um santo alimento que os deu capacidade de começar a descrevê-lo, mas esse conhecimento os levou a loucura e a morte ("Eles não estavam prontos," dizia um espírito de vento para sua parceira, "eles foram apressados demais.")- e se fossem pressionados diriam apenas que ele é justamente o que você esperaria que ele fosse, só que muito mais. E assentado no centro exato da sala do trono está Ele, cuja voz e aparência e textura definia toda a existência de toda outra criatura na sala- no universo- em todos os universos- e cuja presença fazia tuda outra coisa parecer irreal e ilusória. Ele está sempre sentado, sua cabeça acima da linha de visão de todos, até mesmo dos mais poderosos arcons, calmamente mantendo toda a existência em existência, fazendo rodar as galáxias, fazendo seus julgamentos, paciente como só alguem que não está limitado ao tempo é paciente.
O tempo. Toda criatura na sala do trono vê a existência como uma sucessão de fatos, como uma sequência de segundos, como um antes, um agora e um depois, menos aquele que está no trono. Ninguem entende como ele vê o mundo. Uns dizem que Ele é na verdade um imenso ato, e o universo é a interpretação que nossa mente nos dá á medida que ela vai conseguindo decifra-lo. Outros dizem que ele vê o tempo como alguem vê um mapa. Outros dizem que ele já moveu tudo e fez tudo antes mesmo dos universos começarem, e que os atos que os membros da corte vêem serem feitos no trono são apenas uma ilusão. E outros, talvez com mais razão, dizem que a maneira que Ele vê as coisas é que define como as coisas realmente são, e portanto a maneira em que ele vê o tempo- um meio pelo qual seres menores interpretam a realidade- é a natureza verdadeira do tempo, e assim viver a vida experimentando um ato após o outro é uma peculiaridade nossa, e os atos que vemos Ele fazer podem muito bem ter ocorrido há milênios, ou daqui a milhões de anos, ou em bilhões de momentos presentes. A criatura não vê o eterno agir diretamente, mas vê reflexos vindo de todos os cantos do universo captados com todos os sentidos, e os interpreta da maneira mais adequada á sua natureza.
Assim, ninguem sabia com certeza (nem os anjos, nem os arcons, nem os deuses, nem os demiúrgos ao redor das quais gravitam os universos, nem os seres que habitam a árvore do mundo, que atravessa os nove planos da existência e cujas folhas mais altas atingem por pouco a base do trono) o que ocorria quando Lúcifer (esse não era seu nome. Ouvir seu nome verdadeiro era como ouvir o sol nascer, era como ouvir uma luz puramente vermelha rasgar o universo. Seu nome era mais real e concreto do que todos os universos combinados, e quase tão precioso. Novamente, o que temos são reflexos, sussurros que espalham pelo universo e chegam a ouvidos fechados) entrava na sala do trono e pedia uma audiência com o Criador. Ele entrava em intervalos regulares que passavam como minutos para alguns seres, e milênios para outros, mas quando ele entrava, toda a sala se colocava em silêncio. Seus passos eram decididos, quase atrevidos (mas nem tanto), e sua estatura fazia os anjos parecerem pássaros em comparação. Ele era belo, mais belo do que o trono, mais belo até do que Sofia, mas seus passos traziam um frio que invadia a própria essência de cada ser, e sua aura era como um vácuo, um contorno negro em volta de seu corpo que sugava lentamente a vida, cor e forma de tudo ao seu redor. E quando ele abria a boca (ou aquilo que poderíamos chamar de boca. O que ele teria, se tivesse uma boca), e sua voz se elevava ao trono, por um segundo, por um furioso segundo, um segundo que passava como um microsegundo para alguns e como um milênio para outros, todo ser na sala era tomado por um amor violento, angústiado, desesperado por ele, pois ouvir a voz de Lúcifer é como ouvir música pela primeira vez, é como experimentar seu primeiro beijo, é como se esquecer de tudo e querer viver apenas para a amar a voz.
Mas então Aquele que está sentado no trono dizia algo (ninguem entendia o quê, a não ser Lúcifer e alguns pequeninos espíritos que haviam fugido do o universo de Lúcifer. Ele dizia "De onde vens?"), ao que Lúcifer respondia, "De perambular pelo meu universo e andar por ele". Lúcifer tinha seu próprio universo. Ele havia roubado um dos infinitos bilhões de universos, um dos menores, mas ele nunca deixava de lembrar o Criador que ele havia tomado posse daquela pequena faísca de existência e torturado seus habitantes ao ponto da loucura. Haviam rumores de que um dos aspectos do Eterno havia infiltrado o universo, ou estava invadindo o universo, ou simplesmente iria arrancar o universo das mãos de Lúcifer, mas quando se trata destes mistérios, novamente, não conseguimos ver a coisa em si; ela é grande demais para ser vista. A única coisa que havia eram sussuros e reflexos que ecoavam pela sala do trono. Rumores, notícias e fofocas vindo de cantos remotos são comuns nessa sala, onde todos os universos se encontram, e, por um breve instante que dura para sempre, se tocam. Os rumores dizem que durante cada audiência eles discutem sobre um animal que mora em num canto sujo do universo roubado, algo que soa quase como um jogo, algo que soaria como uma aposta, se os habitantes da sala do trono soubessem o que era uma aposta.
E então há silêncio. Lúcifer se cala, e a Voz se cala, e por algum tempo (para alguns parecem segundos, para outros, bilhões de anos) há silêncio total. E então Aquele que se assenta no trono diz, "Porque?"
Lúcifer se mantém impassível e diz, "Você é onisciente. Você sabe."
"Mas isso não me impede de querer ouvir você dizendo. Eu sei de todas as coisas, mas me deleito quando um pequenino se revela voluntariamente a mim."
"Você quer que eu jogue em sua cara a razão pela qual eu te odeio? A razão pela qual eu peguei aquele universo insignificante?"
"Nada é insignificante."
Silêncio, e então Lúcifer fala:
"Eu vencerei, no final. Eu terminarei de destruir esse universo e pegarei outro. Você não cria universos novos para substituir os velhos, e você não tira os universos de mim. Eventualmente, todos os mundos estarão destruídos, e eu vencerei."
"Você não tirou aquele universo de mim."
"Eu sei. Seus príncipes o entregaram em minhas mãos. Mas fui eu que os seduzi. Eu seduzirei outros. Você verá."
"Eu vejo."
"Que seja."
"Você sabe que nunca poderá vencer."
Silêncio. Lúcifer sabe que isso é verdade, sabe que todo o seu esforço é em vão.
Mas Ele está ferido. Lúcifer sorri por entre seu desespero e se anima com esse fato. Ele pode ser todo-poderoso, mas Ele ama esse universo destruído, e enquanto ele pudesse machucar aqueles mundos, ele estava machucando o Criador. Lúcifer vira e começa a sair da sala do trono. A voz do Eterno sai atrás dele com um amor mais forte do que a força combinada dos arcanjos e pede, "Volte. Fique. Você sabe que não tem que ser assim."
Lúcifer se vira, sorrindo triunfalmente. "Você diz isso toda vez."
"Sim."
"Eu recuso seu amor. Eu rejeito seu perdão. E eu vencerei. Enquanto eu tiver uma maneira de te ferir, eu vencerei."
E sua presença não está mais na sala do trono, e um eco atravessa todos os universos, uma voz mais potente do que as estrelas, diz para cada criatura em cada plano de existência, "Volte." E uma voz como o vento da primavera atravessa o bastião da revolta, a pequena sala do trono de Lúcifer (alguns a conhecem como Nastrond, outros como Hades, outros com nomes piores e outros a conhecem como lar) e implora de cada alma danada, "Volte." E uma voz como o de um pai falando com um sua filha doente e morrendo, uma voz com amor e compaixão infinitos- uma voz que definia o próprio amor- sussurra a toda criatura de um pequeno planeta num canto esquecido do universo de Lúcifer, dizendo "Volte".

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