A nossa imaginação, levada por natureza a soerguer-se, e repleta de poesia, cria seres cuja superioridade nos esmaga, e quando lançamos o olhar para o mundo real, qualquer outro nos parece mais perfeito do que nós mesmos. E isso é muito natural, sentimos tantas vezes que nos faltam tantas coisas, e o que nos falta por vezes outro parece possuí-lo. Concedemos-lhe então tudo aquilo que temos nós próprios, e ainda por cima de tudo isso certas qualidade ideais. É assim que imaginamos nós mesmos as perfeições que criam o nosso suplício. Pelo contrário, quando, com toda a nossa fraqueza, toda a nossa lástima, caminhamos com coragem para um fim, sentimo-nos às vezes mais adiantados bolinando do que os outros à força de velas e remos, e… Será, todavia, ter um verdadeiro sentimento de si próprio caminhar com os outros ou mesmo suplantá-los?
E por fim, sobre a escuridão dos telhados lustrosos, a luz fria da manhã tépida raia como um suplício do Apocalipse. É outra vez a noite imensa da claridade que aumenta. E outra vez o horror de sempre — o dia, a vida, a utilidade fictícia, a atividade sem remédio. E outra vez a minha personalidade física, visível, social, transmissível por palavras que não dizem nada, usável pelos gestos dos outros e pela consciência alheia. Sou eu outra vez, tal qual não sou. Com o princípio da luz de trevas que enche de dúvidas cinzentas as frinchas das portas das janelas — tão longe de herméticas, meu Deus! -, vou sentindo que não poderei guardar mais o meu refúgio de estar deitado, de não estar dormindo mas de o poder estar, de ir sonhando, sem saber que há verdade nem realidade, entre um calor fresco de roupas limpas e um desconhecimento, salvo de conforto, da existência do meu corpo. Vou sentindo fugir-me a inconsciência feliz com que estou gozando da minha consciência, o modorrar de animal com q...
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