San Narciso fica para Sul, perto de Los Angeles. Era, como muitos dos lugares com nome na Califórnia, menos uma cidade identificável do que um conjunto de ideias, uma zona de recenseamento, outra residencial, centros comerciais e vários arruamentos que conduziam à auto-estrada. Foi ali que Pierce viveu e tinha o seu quartel-general. Ali iniciara as suas especulações imobiliárias dez anos atrás e cimentara os alicerces de uma fortuna que nunca parara de crescer, embora de maneira irregular e bizarra. Isso tornava o lugar diferente, dava-lhe individualidade. No entanto, se de facto era diferente do resto da Califórnia do Sul, não se notava à primeira vista. Chegou a San Narciso num domingo, conduzindo um Impala que alugara. Nada acontecia. Estava agora numa colina, teve de fechar os olhos por causa do sol, e diante dela estendia-se uma mancha grande de casas que haviam crescido ao mesmo tempo como uma seara, na terra de um castanho pesado. Veio-lhe à memória a primeira vez que abriu um rádio transístor para mudar as pilhas e viu um circuito gravado. Este aglomerado de casas e ruas, visto deste ângulo, surgia agora com uma clareza inesperada e surpreendente, como o circuitos no cartão. Embora soubesse ainda menos de rádios do que de californianos do Sul, compreendeu que em ambos os traçados exteriormente visíveis devia haver, como nos hieróglifos, um significado oculto. Pareceia-lhe que os circuitos gravados lhe poderiam ter dito coisas sem fim; também nos primeiros instantes em San Narciso sentiu como que uma revelação estremecer no limiar da sua consciência. A bruma invadia o horizonte, o sol na paisagem bege e brilhante fazia doer, ela e o seu Chevrolet dir-se-iam parados precisamente no centro de um êxtase religioso e estranho. Como se palavras estivessem a ser pronunciadas numa outra frequência ou no meio de um turbilhão lento de mais para que a sua pele escaldante lhe sentisse o sopro. Devia ser isso.
A Venda do Lote 49
página 17
Thomas Pynchon
1966 dC
Editora: Relógio d'Água
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