O evangelho pode ser “modernizado”? Será factível esperar que a igreja aplique a fé histórica ao cenário contemporâneo, a Palavra ao mundo, sem trair a primeira nem alienar o segundo? Será que o cristianismo pode conservar autêntica a sua identidade e ao mesmo tempo demonstrar a sua relevância, ou é preciso sacrificar um deles em detrimento do outro? Seremos obrigados a escolher entre voltar ao passado e fazer do presente um amuleto, entre recitar velhas verdades que são antiquadas e inventar novas ideias que são espúrias? Dentre estes dois, talvez o maior perigo seja o de que a igreja tente reformular a fé de forma a solapar sua integridade, tornando-a irreconhecível diante dos seus arautos originais. Eu proponho que agora nos concentremos neste problema; o resto do livro dirige-se, de diferentes maneiras, ao problema complementar da relevância.
Em 1937, o académico Harvard Henry J. Cadbury publicou o seu livro O Perigo de Modernizar Jesus. Ele admitiu que o propósito - aliás, louvável - dos “modernizadores” de Jesus era “interpretá-lo em termos que pareçam reais, ou seja, termos modernos, adequados à mente moderna”. O resultado, porém, sempre foi falsificá-lo, e em especial perder de vista sua característica judaica do primeiro século. Tal como os soldados que zombavam de Jesus “rasgaram as suas vestes e lhe puseram uma manta escarlate”, e então, após escarnecerem dele, “tiraram-lhe o manto de púrpura e lhe puseram as próprias roupas”, assim também nós colocamos em Jesus “a nossa própria roupagem” e o revestimos dos “nossos próprios pensamentos”.
Mesmo assim, o desejo de apresentar Jesus de uma forma que apeteça a nossa própria geração é obviamente louvável. Era esta a preocupação de Bonhoeffer na prisão: “O que me preocupa incessantemente”, escreveu ele, em 1944, ao seu amigo Eberhard Bethge, “é a questão de… quem é Cristo de facto para nós hoje?” Esta é, sem dúvida alguma, uma pergunta inquietante. Todavia, ao respondê-la, a tendência da igreja tem sido, em cada geração, desenvolver imagens de Cristo que se desviam do retrato pintado pelos autores no Novo Testamento.
Helmut Thielike foi muito sincero quanto a isso. “Sempre e sempre de novo, a figura de Jesus tem sido terrivelmente amputada”, escreveu ele, “a fim de adaptar-se ao gosto de cada geração”.
Durante toda a história da igreja, Jesus Cristo tem passado por um processo de repetida crucificação. Ele tem sido açoitado, machucado e trancafiado na prisão de incontáveis sistemas e filosofias. Tratado como um corpo de pensamento, ele geralmente tem sido rebaixado a sepulturas conceptuais e coberto com lápides, a fim de que não possa ressurgir e causar-nos mais problemas… Mas este é o milagre - que dessa sucessão de sepulturas conceptuais Jesus Cristo sempre e sempre ressuscita de novo!
Ouça o Espírito, Ouça o Mundo [The Contemporary Christian]
Página 18
John Stott
1992 dC
Editora: ABU Editora
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