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A casa


A casa. Pensá-la agora um pouco sem bem saber porquê. Talvez porque ela se te afunda na memória como tudo o que passou. Existiria ela outrora na cidade? Hoje não existe. Ela implica a existência da família e a família é tão problemática. Centro de convergência da união do sangue, ela fechava-nos no seu abrigo, impregnada da nossa história, do que em nós foi alegria ou amargura ou esperança, envolvia-nos de protecção no que em nós não morre de infância até à idade adulta ou da velhice. Entrar em casa, fechar a porta, e encontrar uma defesa segura contra tudo o que nos agrediu. Nela encontramos o repouso para a fadiga do corpo e da alma. Entrar em casa é reencontrarmo-nos connosco, a nossa pessoa de que nos tínhamos perdido. É sobretudo estar alguém connosco, mesmo que não esteja ninguém. Porque a casa tem uma alma. Ela cria-se com o que de todos os que nela são ou foram, se depositou nas salas, nos móveis, em todos os objectos. É por isso que entrar numa casa vazia e alheia é sentir logo uma saturação de presença, de qualquer coisa animada. Eis porque nos perturba a mudança dos móveis que a nossa mulher entendeu fazer. Porque isso é um atentado contra a pessoa da própria casa, a alma que era sua e nós conhecíamos.
Mas hoje a casa desfez-se. A casa aprende-se devagar e já não há quem a ensine. Ela não é mais um sítio de se ser mas de se estar. Ela é mesmo muitas vezess o sítio em que se pode estar apenas defendido contra o frio, a chuva, o abrigo em que se pode dormir. E isto não apenas para o pobre mas para o rico. Os bairros da lata são sítios em que se dorme (mal), porque a rua é o sítio de se estar acordado. Assim quem lá vive também prefere um automóvel e TV a uma casa. Que se lhes dê a opção entre uma barraca com automóvel e casa sem ele. Mas o rico, que tem casa, vive também na rua, mesmo que não viva. Porque a leva com ele para casa no viver e no sentir. E não apenas porque o telefone e TV e ruídos lha invadem, mas porque lhe traz o pensar e sentir que na rua ficou. A casa pode então ser um brinquedo, um objecto de capricho, de exibição, e no seu artifício não se impregna do sangue de quem a habita. Ela está separada de quem lá mora como a família que cedo se desagrega. Ao apelo então da memória de um lar que já não há, inventa-se a casa de campo, que é normalmente a casa de praia, para que se estabeleça a ambiguidade de já não ser a casa da cidade e sê-lo ainda. De campo ou de praia, a casa contamina-se logo da casa que por um tempo se deixou e que veio logo atrás. A maior perda que na da cidade se tem é a da nossa própria pessoa. E é essa que desesperadamente se tenta recuperar. Mas a saudade da nossa pessoa fascina-nos e repele-nos. O campo é o mito da cidade – diz-se. Como aliás a cidade é o do campo. Mas tudo é mito do que se perdeu. A infância, a juventude, todo o outrora da memória.
 A casa. Sonho para sempre perdido. Como tudo onde o tempo se demorava. Porque o tempo morreu e só dele resta o passar...

Pensar 
página 189 
Vergílio Ferreira 
1992 dC
Editora: Bertrand

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