Religião. Parece inadequado considerar esta matéria na rubrica «intervenções»: neste campo, as actividades de Estaline careciam de substância teológica. Desde o início, a linha bolchevique tinha sido de «ateísmo militante». À parte a imposição de pobreza e da opressão, «nenhum acto do governo de Lenin», crê Richard Pipes,
trouxe maior sofrimento à população geral, as chamadas «massas», do que a profanação das suas crenças religiosas, o encerramento dos seus lugares de culto e os maus tratos infligidos ao clero.
A par de qualquer outra reunião de duas ou mais pessoas, o culto organizado era «considerado prova cabal de intentos contra-revolucionários». O brutal ataque à igreja, em particular à Igreja Ortodoxa Russa (atrasada, corrupta e fatalmente comprometida pelas suas ligações à polícia czarista) talvez fosse politicamente compreensível, daí as pilhagens e linchamentos, a caça aos padres, os julgamentos sumários, as execuções. Mas foi intenção extraordinária do regime aniquilar também o culto privado, até individual (com o objectivo de substituir a «fé em Deus pela fé na ciência e na máquina»). Numa das suas convulsões fantasticamente pos-modernas, os Bolcheviques utilizaram a arma da zombaria orquestrada: desfiles de rua blasfemos e semi-pornográficos com komsomols aos pinotes vestidos de padres, popes, rabinos. Os jornais afirmavam que estes cortejos eram saudades com espontâneo deleite, mas o povo, como sentidamente escreveu uma testemunha, olhava-os com
aturdido horror. Não havia protestos nas ruas silenciosas - os anos de terror tinham feito a sua obra - mas quase ninguém tentava sair à rua quando lá andava esta procissão chocante. Pessoalmente, como testemunha do carnaval de Moscovo, posso assegurar que não havia gota de prazer popular naquilo. O cortejo percorria ruas desertas e as suas tentativas de provocar o riso deparavam com um silêncio sombrio…
Sim, e que espécie de riso poderia ser esse? Neste período, os casamentos pela igreja eram declarados nulos (e os ritos funerários proibidos). Riso e leninismo: o mais profano casamento de todos.
Koba, o Terrível [Koba the Dread]
Página 196
Martin Amis
2002 dC
Editora: Teorema
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