Pelas minhas contas, temos: pessoas, gente, povo e humanidade. O pior são as pessoas, claro, e o melhor é a humanidade. As pessoas não usam setas no trânsito; a humanidade foi à Lua. A humanidade é tão digna que, muitas vezes, aparece grafada com h grande: a Humanidade. Isso nunca aconteceu às pessoas, e bem. Não faz sentido escrever que as pessoas deitam lixo para o chão (coisa que a Humanidade, aliás, nunca faria). As pessoas raramente merecem a honra da maiúscula. Em geral, são referidas no fim da conversa, em tom de lamento, "Realmente, as pessoas...", e sempre com p pequeno.
A gente talvez esteja num patamar acima, mas não muito. Há gente muito estúpida. O que é normal, dado que a gente costuma ser formada por muitas pessoas. Mas, apesar de tudo, às vezes é possível confiar na gente, e até desejar combinar um programa com ela, como fica claro na frase: "Então, gente, vamos sair?" Um convite que, não por acaso, nunca é feito às pessoas.O povo já é outra coisa. Dedica-se sobretudo à política, e com uma nobreza que falta claramente às pessoas. Os políticos, infelizmente, são, em geral, pessoas. O povo, que é sábio, vota neles, mas apenas porque não tem alternativa. Pudesse o povo votar no povo e as nações, verdadeiramente governados pelos povos, prosperariam. No entanto, o povo não tem outro remédio senão votar em pessoas, com os resultados que todos conhecemos.
Não surpreende, por isso que a humanidade seja capaz de tantas e tão grandes façanhas: ela é formada pelo conjunto dos povos. Quando os povos se juntam para criar a humanidade, aiam a excelência de cada um à dos outros, e o resultado é uma entidade que consegue atingir cumes da civilização, como as vacinas, a conquista do espaço e o gin tónico.
Falta descobrir o essencial: em que ponto passam as pessoas a ser gente - e, sobretudo, quando é que a gente se transforma em povo e Humanidade. Esse momento tem de ser identificado e estudado na escola. Deve ser uma delícia viajar de autocarro com a Humanidade, aguardar na fila do supermercado atrás da Humanidade, ir ao estádio ver o nosso clube na companhia da Humanidade. Fazer tudo isso com pessoas é quase sempre chato, e muitas vezes perigoso.
Estar Vivo Aleija
Página 67
Ricardo Araújo Pereira
2018 dC
Editora: Tinta da China
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