Infelizmente, o movimento instintivo derrubou um copo de vinho tinto por cima do aparelho de uma senhora de porte severo que se encontrava à minha direita e que, depois de soltar um grito agudo, lembrando o piar agoirento de algumas aves noturnas, começou a murmurar imprecações de teor algo insultuoso, enquanto procurava, desesperada, na carteira um lenço com que pudesse minorar os estragos provocados no pequeno engenho.
- Tem aqui o meu guardanapo - decidi mostrar-lhe a minha solicitude, a despeito dos lamentáveis impropérios que ciciava. - São coisas que acontecem quando menos se desejam…
E de novo o Mendonça:
- São coisas que não deviam acontecer, pois têm efeitos irreparáveis, sobretudo nesses modelos… Basta um pingo de suor, uma lágrima, um pouco de baba, para deixarem de funcionar!
- Pois eu encomendei há dias um que pode levar-se para a banheira ou até para a piscina! - Elucidou o corcunda.
- Ah, sim?! Mas que maravilha… e que prático!
Era a voz da minha mulher.
- O meu filho, que vive na Austrália, usava um enquanto fazia surf, e ainda telefonou para a praia, a pedir socorro, quando foi atacado pelo tubarão! - informou de outro canto da mesa um sujeito de faces muito engelhadas. - Mas o bicho, com mais de três metros, também o engoliu, junto com o braço…
- E um pedaço da anca… - comentou em tom lamuriento uma senhora robusta que deveria ser mãe do amputado.
- Pois é… - concluiu o anfitrião, voltando a lançar-me um olhar rancoroso. - A vida está cheia de desgostos e de prejuízos, mas há alguns que bem poderiam e deveriam evitar-se!
Fez-se de novo silêncio e eu não resisti a comentar:
- Lamento o sucedido, mas…
- Mas o quê?... - abespinhou-se a proprietária do aparelho inutilizado.
- Do mal o menos, animou-se um pouco a conversa… - atrevi-me a terminar a frase, conquanto já previsse que seria mal acolhida por todos.
Na verdade, há situações da vida em que não consigo suster a ironia.
Portugal Definitivo
Página 21
António Vitorino d’Almeida
2012 dC
Editora: Clube do Autor
Comentários