Quanto ao jantar, consistiu numa refeição gastronomicamente correcta, mas devo dizer que decorreu numa atmosfera pouco ou nada agradável.
O silêncio devia-se ao facto perturbador de que quase todas aquelas pessoas tinham junto do respectivo prato um pequeno aparelho luminoso no qual deslizavam um dedo ou, no caso de uma senhora velhinha que devia ser avó do Mendonça, carregando um pauzinho preto, uma espécie de palito mais grosso e alongado.
Percebi que se tratava de um objecto já em desuso, apropriado à idade da vetusta utente, cuja mão tremia enervantemente, sendo talvez por isso que lhe tinham fornecido o pauzinho, uma espécie de muleta electrónica.
Desviei o olhar da macróbia numa louvável tentativa de iniciar qualquer conversação interessante, começando por um elogio à sopa de agriões, uma tradição muito portuguesa, mas ninguém me prestou atenção, pois verifiquei que estavam todos a ler e a escrever, mesmo enquanto levavam a colher à boca, uma série de frases curtas cujo conteúdo e significado é óbvio que me escapava.
Daí também resultou que a única voz que se fazia ouvir era a minha, introduzindo um monólogo monótono e até com laivos burlescos num acto social que sempre imaginei caracterizado pela vivacidade do diálogo entre os comensais.
Embora não seja amante desse tipo de humor, cheguei mesmo a contar duas ou três anedotas que ainda retinha na memória dos meus tempos de estudante, mas verifiquei, dominado por um crescente incómodo, que ninguém reagiu, penso mesmo que ninguém ouviu, nem a minha mulher, atentíssima ao que se passava num aparelho alegadamente mais sofisticado - pois emitia de quando em quando uns ruídos tamborilantes de batuque -, que era manipulado com afã e aparente destreza por um cavalheiro corcunda que ficara sentado ao seu lado.
- Temos música…! - comentei, com a possível jovialidade que a situação me permitia.
E obtive pelo menos uma reacção:
- É o sistema que está lento! Ontem foi o mesmo!... - grasnou o amarranado, a boca atafulhada de puré de batata e molho, pois, talvez devido à acentuada corcova, conjugava mal as garfadas com a utilização do aparelhinho.
- Curioso… - comentei, optando por uma expressão preocupada. - E já agora, se não levarem a mal a minha indiscrição, para que servem concretamente esses objectos?
- Servem para tudo, meu caro senhor! - exclamou o dono da casa, num tom de voz bastante agreste. - Mas agora, se nos permite, agradecia que não nos interrompesse, pois o meu sistema também está lento! Lentíssimo!
- Pronto! Pronto! Longe de mim desconcentrar Vossa Excelência! - ripostei, com um gesto amplo do antebraço que me é peculiar, um pouco à maneira das saudações hitlerianas, embora sem quaisquer conotações de ordem política ou ideológica.
Portugal Definitivo
Página 20
António Vitorino d’Almeida
2012 dC
Editora: Clube do Autor
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