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Humanidade em geral e pessoas em particular


Aquilo era um ataque da mais sincera autoflagelação e, ao acabar, olhou para o Stárets com o mais resoluto olhar de desafio. 

- Tal qual um médico me confessou a muito - observou o Stárets. - Era um homem já de idade e com uma inteligência incontestável. Falava do mesmo modo sincero, embora com ironia, mas uma triste ironia. Gosto da humanidade, dizia ele, mas eu próprio me admiro: quanto mais gosto da humanidade em geral, menos gosto das pessoas em particular, isto é, das pessoas em separado, das pessoas concretas. Nos meus sonhos, dizia ele, chego muitas vezes as ideias apaixonadas de servir a humanidade e, se calhar, seria mesmo capaz de subir ao Calvário pelas pessoas se de repente isso fosse necessário; ao mesmo tempo digo-lhe sou incapaz de conviver com alguém no mesmo quarto durante dois dias, digo por experiência. Mal alguém fica perto de mim, logo a sua personalidade me oprime o amor próprio e me constrange a liberdade. Sou capaz de ganhar ódio, de um dia para o outro, a melhor das pessoas: odeio este porque come devagar ao almoço, odeio aquele porque está constipado e não pára de assoar o nariz. Basta as pessoas tocarem-me ao de leve, dizia-me ele, para me tornar inimigo delas. Entretanto, continuava, sempre me sucedeu que, quanto mais detestei as pessoas em particular, tanto mais glorioso era o meu amor pela humanidade em geral. 

- Mas o que hei-de eu fazer? O que se pode fazer neste neste caso? Não é um desespero? 

- Não porque já é suficiente de facto de a senhora o lamentar. Faça o que puder, e será compensada por Deus. Já fez muito, se conseguiu consciencializar o seu próprio caráter de maneira tão profunda e sincera! Porém, se falou agora comigo com tanta sinceridade apenas para receber louvores, como das resto já acabou de receber, então de certeza que não chegará a lado nenhum nas obras do amor vivo: tudo permanecerá apenas nos seus sonhos, e toda a sua vida passará como uma sombra. E esquecer-seá também, é claro, da vida para além da vida, nesse particular há-de apaziguar-se de uma qualquer maneira natural.

- Esmagou-me! Só agora, precisamente no instante em que o senhor estava a dizê-lo, é que compreendi que, na verdade, eu apenas estava à espera que louvasse a minha sinceridade quando disse que não suportaria a ingratidão. O senhor entendeu o meu caráter, apanhou o meu feitio e explicou-mo! 

Os Irmãos Karamazov 
Página 76 
Fiódor Dostoiévski 
1880 dC 
Editora: Editorial Presença

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