Entrado de fresco na redacção de The Economist, em Londres, vira-me encarregado de cobrir uma sessão pública nos cavernosos paços municipais de St. Pancras. A sessão era um comício de protesto contra a intervenção anglo-americana na Guerra da Coreia. O recinto estava a apinhado. O presidente da mesa, que era um conhecido publicista de esquerda e companheiro de jornada apresentou Joseph Needham. E levantou-se então uma figura de cabelos brancos, um tanto leonina. Apresentou-se como titular da cátedra William Dunn de Microbiologia na Universidade de Cambridge como testemunha directa do que estava a passar-se tanto na China como na Coreia do Norte. Insistiu no seu compromisso de certo modo sagrado de cientista de destaque internacional com a verificação empírica e experimental dos factos. A seguir mostrou ao auditório um cartucho de projéctil vazio. Declarou ao auditório que aquele objeto sinistro era uma prova irrefutável do uso de armas bacteriológicas pela artilharia americana. Os epidemiologistas chineses tinham verificado e repetido a verificação dos factos. O presidente da mesa convidou então a assembleia a que o mandatasse para enviar um telegrama exprimindo o mais veemente repúdio ao presidente Truman. Mas solicitava do mesmo modo que quem de entre os presentes não dessse crédito às conclusões do professor Needham usasse da palavra e exprimisse o seu desacordo. Nesse caso, a mensagem a enviar à Casa Branca não seria apresentada como o unânime.
Os livros que não escrevi [My unwritten books]
Não havia sinais de ameaça física, como a que se faria sentir, digamos, num comício fascista. A proposta do presidente da mesa observava o melhor do fair play britânico. Pelo meu lado, eu cria que Needham se auto-iludia ou estava a mentir movido por motivos de propaganda. Mas continuei sentado e imóvel, mudo. Não por medo, mas sob a pressão física do embaraço, tolhido pela ideia de me oferecer em espectáculo. O protesto “unânime" foi assim enviado e o seu conteúdo transmitido à imprensa. Saí do comício descontente e deprimido. Devido a minha falta de fibra e coragem (daquilo a que em alemão se chama Zivilcourage). Este episódio, que data de há mais de meio século, não só continua a pesar-me, como veio a determinar a minha atitude perante os cedem à chantagem totalitária, seja esta nacional-socialista, estalinista ou mccarthysta. Seja a do arruaceiro anarquista, do maoísta ou do fascista. Soube, dessa noite em diante, como me poderia ser fácil cair na abjeção.
Página 13
George Steiner
2008 dC
Editora: Gradiva
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