Essencialmente sem poder durante cerca de dois mil anos, os judeus no exílio, nos ghettos, rodeados pela tolerância equívoca das sociedades gentias, não estavam em posição de perseguir outros seres humanos. Não podiam, fosse por que justa causa fosse, torturar, humilhar ou deportar outros homens e mulheres. Tal foi a nobreza singular dos judeus, uma nobreza que me parece muito maior do que qualquer outra. Para mim é uma verdade axiomática que seja quem for que torture outro ser humano, ainda que sob a pressão da necessidade militar e política, seja quem for que sistematicamente humilhe ou deixe sem o seu lar outro homem, mulher ou criança, degrada o núcleo essencial da sua própria humanidade. O imperativo da sobrevivência, as ambiguidades éticas da instalação no que era a Palestina (por meio de que sofística um israelita não-crente e não-praticante se autoriza a invocar a promessa de Deus a Abraão?) forçaram Israel a torturar, a humilhar, a expropriar - ainda que muitas vezes em menor medida do que os seus inimigos árabe e islâmicos. O estado vive a coberto das suas muralhas. Armado até os dentes. Conhece o racismo. Em resumo: transformou os judeus em homens comuns. A verdade é que a demografia ameaça esta normalidade contaminada. Em breve haverá mais árabes do que judeus no interior de Israel. Só uma catástrofe no mundo exterior poderia desencadear uma nova vaga de imigrantes. Parece mais do que verosímil que o colapso de Israel poderia produzir uma crise psicológica e espiritual irreparável na Diáspora. Mas não é certo. É muito possível que o judaísmo seja maior do que Israel, que nenhum revés histórico possa extinguir o mistério da sua persistência. O cristianismo talvez fosse mais forte nas catacumbas. Pura e simplesmente, são coisas que não sabemos. Entretanto, todavia, Israel está a reduzir o judeu à condição comum do homem nacionalista. Enfraqueceu essa singularidade moral e essa aristocracia da não-violência frente aos outros que foram a sua glória trágica.
Os livros que não escrevi [My unwritten books]
Página 175
George Steiner
2008 dC
Editora: Gradiva
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