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Todos nós somos hóspedes da vida


A própria Diáspora vive ameaçada. Referi-me às perdas constantes causadas pela assimilação e pelos casamentos mistos. Mas creio intensamente que para o judeu fora de Israel, para uma certa proporção de judeus fora de Israel, a sobrevivência se apresenta como uma missão. Em vários pontos fundamentais da lei mosaica e da exegese talmúdica, o judeu é ensinado a dar as boas-vindas ao estrangeiro. Nunca deverá esquecer que ele próprio foi um estrangeiro, um estranho na terra do Egipto. Que também ele foi um sem eira nem beira e um refugiado numa terra que o recebia sem hospitalidade. A minha convicção é que o judeu da Diáspora deve sobreviver a fim de ser um hóspede entre os homens. Todos nós somos hóspedes da vida, lançados nela independentemente da nossa inteligência e da nossa vontade. Hoje estamos a tomar sombriamente consciência de que somos os hóspedes de um planeta vandalizado. A menos que aprendamos a ser hóspedes uns dos outros, a humanidade sucumbirá na destruição mútua e no ódio sem tréguas. Um hóspede aceita as leis e os usos do seu anfitrião, mas pode tentar esforçar-se por reformá-las. Aprende as línguas dos que o acolhem, mas pode tentar falá-las melhor. Acima de tudo, se partir, livremente ou compelido a fazê-lo, procura deixar a morada do seu anfitrião mais linda e mais bela do que a encontrou. Esforçar-se-á (é o conatus de Espinosa) a acrescentar alguma coisa de valor, de ordem intelectual, ideológica ou material ao que encontrou quando bateu à porta. 

A arte de ser hóspede é muitas vezes quase impossível de praticar. O preconceito, a inveja, os atavismos territoriais do anfitrião instauram uma ameaça constante. Por mais calorosas que tenham sido as boas-vindas, o judeu deve manter discretamente as malas feitas. Se for forçado a retomar a sua errância, não considerará essa experiência como uma punição lamentável. Ela é também uma oportunidade. Não há língua que não valha a pena aprender. Nem nação ou sociedade não valha a pena conhecer. Não há cidade que não valha a pena deixar, se sucumbir à injustiça. Somos cúmplices do que nos deixa indiferentes. A senha do judaísmo é Exodus, impelindo a novos começos, apontando a estrela da manhã. Hitler falava sarcasticamente de Luftmenschen, dos judeus como «criaturas do ar». Mas o ar pode ser um reino de liberdade e de luz. «Tornai-vos uma força de fertilidade entre os homens», insistia um dos fundadores de Israel, «porque confinados num só país podeis converter-vos em estrume.» O nacionalismo, do qual Israel se tornou necessariamente figura emblemática, o apelo tribal, parece que não só estranho ao génio interior do judaísmo e ao enigma da sua sobrevivência: viola também o imperativo de Baal Shem Tov, mestre do hassidismo: «A verdade está sempre no exílio.» Esta máxima é minha oração da manhã. 

Os livros que não escrevi [My unwritten books] 
Página 176 
George Steiner 
2008 dC 
Editora: Gradiva

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