Quem disse à estrela o caminho Que ela há-de seguir no céu? A fabricar o seu ninho Como é que a ave aprendeu? Quem diz à planta "Floresce!" E ao mudo verme que tece Sua mortalha de seda Os fios quem lhos enreda? Ensinou alguém à abelha Que no prado anda a zumbir Se à flor branca ou à vermelha O seu mel há-de ir pedir? Que eras tu meu ser, querida, Teus olhos a minha vida, Teu amor todo o meu bem... Ai! não mo disse ninguém. Como a abelha corre ao prado, Como no céu gira a estrela, Como a todo o ente o seu fado Por instinto se revela, Eu no teu seio divino Vim cumprir o meu destino... Vim, que em ti só sei viver, Só por ti posso morrer. Almeida Garrett
E por fim, sobre a escuridão dos telhados lustrosos, a luz fria da manhã tépida raia como um suplício do Apocalipse. É outra vez a noite imensa da claridade que aumenta. E outra vez o horror de sempre — o dia, a vida, a utilidade fictícia, a atividade sem remédio. E outra vez a minha personalidade física, visível, social, transmissível por palavras que não dizem nada, usável pelos gestos dos outros e pela consciência alheia. Sou eu outra vez, tal qual não sou. Com o princípio da luz de trevas que enche de dúvidas cinzentas as frinchas das portas das janelas — tão longe de herméticas, meu Deus! -, vou sentindo que não poderei guardar mais o meu refúgio de estar deitado, de não estar dormindo mas de o poder estar, de ir sonhando, sem saber que há verdade nem realidade, entre um calor fresco de roupas limpas e um desconhecimento, salvo de conforto, da existência do meu corpo. Vou sentindo fugir-me a inconsciência feliz com que estou gozando da minha consciência, o modorrar de animal com q...
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