A nossa crença no Céu – prosseguiu o pastor – não é modificada pela nossa descrença no velho inferno medieval. Nós cremos – disse ele, lançando um rápido olhar ao longo do liso e polido plano inclinado, em direcção à porta de estilo Arte Nova, através da qual o esquife seria lançado às chamas –, nós cremos que este nosso irmão já está unificado com o Uno. – Martelava as palavras, como pequenos paralelepípedos de manteiga, com a sua marca particular. – Alcançou a unidade. Ignoramos o que seja esse Uno com quem (ou com que) ele está agora unificado. Não conservamos as velhas crenças medievais em mares refulgentes e coroas de ouro. A verdade é beleza, e para nós, geração amante da verdade, há uma beleza maior na certeza de que o nosso irmão se acha neste momento reabsorvido no espírito universal.
E por fim, sobre a escuridão dos telhados lustrosos, a luz fria da manhã tépida raia como um suplício do Apocalipse. É outra vez a noite imensa da claridade que aumenta. E outra vez o horror de sempre — o dia, a vida, a utilidade fictícia, a atividade sem remédio. E outra vez a minha personalidade física, visível, social, transmissível por palavras que não dizem nada, usável pelos gestos dos outros e pela consciência alheia. Sou eu outra vez, tal qual não sou. Com o princípio da luz de trevas que enche de dúvidas cinzentas as frinchas das portas das janelas — tão longe de herméticas, meu Deus! -, vou sentindo que não poderei guardar mais o meu refúgio de estar deitado, de não estar dormindo mas de o poder estar, de ir sonhando, sem saber que há verdade nem realidade, entre um calor fresco de roupas limpas e um desconhecimento, salvo de conforto, da existência do meu corpo. Vou sentindo fugir-me a inconsciência feliz com que estou gozando da minha consciência, o modorrar de animal com q...
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