A todos os bancários com 58 anos que estão há dez anos na reforma. A todos os jornalistas com dentaduras como teclados de piano pagas quase de borla antes que lhes tirassem essa trafulhice. A todos os maus professores que subiram na carreira só porque passaram tantos anos no ensino quanto os passados pelos bons professores. A todos os mestrandos com idade para saber que nunca exercerão o que estudam, mas que vão aproveitando porque entretanto sempre vai pingando a bolsa obtida graças à influência de um familiar. A todos os condutores de Mercedes que o têm porque o seu nível de patamar do emprego diz "direito a carro de classe X", quando a qualidade com que exercem o trabalho seria mais para andar de burro. A todos os autarcas que fizeram obras em casa e não precisaram de pagar por elas. A todos, pobres e ricos, donos de jantes de liga leve e filhos com educação ainda mais leve. A todos os que lá em casa bebem vinho vulgar mas durante a semana, com factura metida na tesouraria da empresa, hesitam entre o Pera Manca e um Quinta do Crasto Vinha Maria Teresa. A todos os empresários que declaram às Finanças prejuízo e aos amigos declaram que este ano vai ser Maldivas. A todos: obrigado. Ontem, vendo os meus feitores, humildes e com a boina enrodilhada nas mãos, prestando contas à dona alemã da quinta, senti a minha parte da vergonha. Mas a todos, obrigado: graças a vocês sei que há maiores culpados.
E por fim, sobre a escuridão dos telhados lustrosos, a luz fria da manhã tépida raia como um suplício do Apocalipse. É outra vez a noite imensa da claridade que aumenta. E outra vez o horror de sempre — o dia, a vida, a utilidade fictícia, a atividade sem remédio. E outra vez a minha personalidade física, visível, social, transmissível por palavras que não dizem nada, usável pelos gestos dos outros e pela consciência alheia. Sou eu outra vez, tal qual não sou. Com o princípio da luz de trevas que enche de dúvidas cinzentas as frinchas das portas das janelas — tão longe de herméticas, meu Deus! -, vou sentindo que não poderei guardar mais o meu refúgio de estar deitado, de não estar dormindo mas de o poder estar, de ir sonhando, sem saber que há verdade nem realidade, entre um calor fresco de roupas limpas e um desconhecimento, salvo de conforto, da existência do meu corpo. Vou sentindo fugir-me a inconsciência feliz com que estou gozando da minha consciência, o modorrar de animal com q...
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