Sobretudo, obrigava-me a visitar regularmente os cafés especializados onde se reuniam os nossos humanistas profissionais. Os meus bons antecedentes faziam, naturalmente, com que aí fosse bem recebido. Lá, sem me fazer notar, deixava escapar um palavrão: «Graças a Deus!», dizia, ou mais simplesmente: «Meu Deus…» Sabe como os nossos ateus de taberna são uns tímidos comungantes. Um momento de pasmo seguia-se ao enunciado desta enormidade, olhavam-se, estupefactos, depois rebentava o tumulto, uns fugiam do café, outros cacarejavam com indignação sem a nada dar ouvidos, todos se contorciam em convulsões, como o Diabo sob a água benta.
E por fim, sobre a escuridão dos telhados lustrosos, a luz fria da manhã tépida raia como um suplício do Apocalipse. É outra vez a noite imensa da claridade que aumenta. E outra vez o horror de sempre — o dia, a vida, a utilidade fictícia, a atividade sem remédio. E outra vez a minha personalidade física, visível, social, transmissível por palavras que não dizem nada, usável pelos gestos dos outros e pela consciência alheia. Sou eu outra vez, tal qual não sou. Com o princípio da luz de trevas que enche de dúvidas cinzentas as frinchas das portas das janelas — tão longe de herméticas, meu Deus! -, vou sentindo que não poderei guardar mais o meu refúgio de estar deitado, de não estar dormindo mas de o poder estar, de ir sonhando, sem saber que há verdade nem realidade, entre um calor fresco de roupas limpas e um desconhecimento, salvo de conforto, da existência do meu corpo. Vou sentindo fugir-me a inconsciência feliz com que estou gozando da minha consciência, o modorrar de animal com q...
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