Nessa altura, pensei muitas vezes que, se me obrigassem a viver dentro do tronco seco de árvore, sem outra ocupação além de olhar a flor do céu por cima da minha cabeça, ter-me-ia habituado pouco a pouco. Observaria a passagem das aves ou os encontros entre as nuvens, tal como aqui observava as extraordinárias gravatas do advogado, e como, num outro mundo, esperava até sábado para apertar nos meus braços o corpo de Maria. Ora a verdade, afinal de contas, é que eu não estava dentro de um tronco de uma árvore. Havia pessoas mais infelizes do que eu. Acabamos por nos habituar a tudo, gostava a minha mãe de dizer.
E por fim, sobre a escuridão dos telhados lustrosos, a luz fria da manhã tépida raia como um suplício do Apocalipse. É outra vez a noite imensa da claridade que aumenta. E outra vez o horror de sempre — o dia, a vida, a utilidade fictícia, a atividade sem remédio. E outra vez a minha personalidade física, visível, social, transmissível por palavras que não dizem nada, usável pelos gestos dos outros e pela consciência alheia. Sou eu outra vez, tal qual não sou. Com o princípio da luz de trevas que enche de dúvidas cinzentas as frinchas das portas das janelas — tão longe de herméticas, meu Deus! -, vou sentindo que não poderei guardar mais o meu refúgio de estar deitado, de não estar dormindo mas de o poder estar, de ir sonhando, sem saber que há verdade nem realidade, entre um calor fresco de roupas limpas e um desconhecimento, salvo de conforto, da existência do meu corpo. Vou sentindo fugir-me a inconsciência feliz com que estou gozando da minha consciência, o modorrar de animal com q...
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