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Que valores essenciais abriremos mão nesse processo?


“A misericórdia é um valor que devia estar no cerne de qualquer sociedade funcional e tolerante. A misericórdia reconhece que somos todos imperfeitos e, ao fazê-lo, permite-nos respirar e sentir-nos protegidos. Sem misericórdia, uma sociedade perde a sua alma e devora-se a si mesma”. 
“Contudo, a misericórdia não é um dado adquirido. É um valor que temos de alimentar e procurar”, afirma, defendendo a importância de “cometer erros, corrigi-los, ousar duvidar e, pelo caminho, descobrir ideias novas e mais avançadas. Sem misericórdia, a sociedade torna-se inflexível, medrosa, vingativa e sem sentido de humor”. 
Sobre a “cancel culture”, ou seja, a negação da validade da obra de um artista reprovado pelos seus atos ou opiniões, Nick Cave acredita que é “a antítese da misericórdia. O politicamente correto tornou-se a religião mais infeliz do mundo. Em tempos uma tentativa meritória de reimaginar a nossa sociedade de forma mais justa, agora apresenta todos os piores aspetos que a religião tem para oferecer, e nenhuma da sua beleza - [cheia de] certezas morais e de uma arrogância acima de qualquer capacidade de redenção. Tornou-se numa má religião fora de controlo”. 
“A recusa da cancel culture em lidar com ideias desconfortáveis tem um efeito asfixiante na alma criativa de uma sociedade. A compaixão é a experiência primária da qual emergem o génio e a generosidade da imaginação. A criatividade é um ato de amor que pode chocar com as nossas crenças mais importantes, assim gerando novas formas de ver o mundo. Essa é a função e a glória das artes e das ideias. Uma força que encontra o seu significado no cancelamento dessas ideias difíceis trava o espírito criativo da sociedade”. 
“No entanto, cá estamos, numa cultura de transição - e é possível que estejamos a caminho de uma sociedade mais equalitária - não sei. Mas de que valores essenciais abriremos mão nesse processo?”. 

Mercy is a value that should be at the heart of any functioning and tolerant society. Mercy ultimately acknowledges that we are all imperfect and in doing so allows us the oxygen to breathe — to feel protected within a society, through our mutual fallibility. Without mercy a society loses its soul, and devours itself. 
Mercy allows us the ability to engage openly in free-ranging conversation — an expansion of collective discovery toward a common good. If mercy is our guide we have a safety net of mutual consideration, and we can, to quote Oscar Wilde, “play gracefully with ideas.” 
Yet mercy is not a given. It is a value we must nurture and aspire to. Tolerance allows the spirit of enquiry the confidence to roam freely, to make mistakes, to self-correct, to be bold, to dare to doubt and in the process to chance upon new and more advanced ideas. Without mercy society grows inflexible, fearful, vindictive and humourless. 
Frances, you’ve asked about cancel culture. As far as I can see, cancel culture is mercy’s antithesis. Political correctness has grown to become the unhappiest religion in the world. Its once honourable attempt to reimagine our society in a more equitable way now embodies all the worst aspects that religion has to offer (and none of the beauty) — moral certainty and self-righteousness shorn even of the capacity for redemption. It has become quite literally, bad religion run amuck. 
Cancel culture’s refusal to engage with uncomfortable ideas has an asphyxiating effect on the creative soul of a society. Compassion is the primary experience — the heart event — out of which emerges the genius and generosity of the imagination. Creativity is an act of love that can knock up against our most foundational beliefs, and in doing so brings forth fresh ways of seeing the world. This is both the function and glory of art and ideas. A force that finds its meaning in the cancellation of these difficult ideas hampers the creative spirit of a society and strikes at the complex and diverse nature of its culture.  
But this is where we are. We are a culture in transition, and it may be that we are heading toward a more equal society — I don’t know — but what essential values will we forfeit in the process? 

Love, Nick

Artigo: Blitz
Original: Red Hand Files

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