Depois morres, amortalham-te à pressa, um qualquer, refilando – não há tempo! –, ninguém para te benzer, ninguém mesmo para soltar um pequeno suspiro por ti, depressa que se faz tarde. Compram-te um caixão barato, tiram-te da cave, como tiraram de manhã essa desgraçada, fazem o teu banquete de luto numa taberna. Na campa rasa – a lama, a sujidade, essa neve líquida; para quê fazer cerimónias? «Toca a baixá-la, Vânia; lá vai a má sina dela – de pernas para o ar aqui também, a grande porca. Mas encurta-me essas cordas rapaz» «Estão bem assim.» «Mas como é que estão bem assim? Não vês que ela está de lado? É um ser humano, ao fim e ao cabo! E depois, que se amole! Vai, deita a terra.» Os coveiros não vão querer zangar-se por tua causa.
E por fim, sobre a escuridão dos telhados lustrosos, a luz fria da manhã tépida raia como um suplício do Apocalipse. É outra vez a noite imensa da claridade que aumenta. E outra vez o horror de sempre — o dia, a vida, a utilidade fictícia, a atividade sem remédio. E outra vez a minha personalidade física, visível, social, transmissível por palavras que não dizem nada, usável pelos gestos dos outros e pela consciência alheia. Sou eu outra vez, tal qual não sou. Com o princípio da luz de trevas que enche de dúvidas cinzentas as frinchas das portas das janelas — tão longe de herméticas, meu Deus! -, vou sentindo que não poderei guardar mais o meu refúgio de estar deitado, de não estar dormindo mas de o poder estar, de ir sonhando, sem saber que há verdade nem realidade, entre um calor fresco de roupas limpas e um desconhecimento, salvo de conforto, da existência do meu corpo. Vou sentindo fugir-me a inconsciência feliz com que estou gozando da minha consciência, o modorrar de animal com q...
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