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A mostrar mensagens de 2020

O sentido de humor do leninismo com a religião

Religião. Parece inadequado considerar esta matéria na rubrica «intervenções»: neste campo, as actividades de Estaline careciam de substância teológica. Desde o início, a linha bolchevique tinha sido de «ateísmo militante». À parte a imposição de pobreza e da opressão, «nenhum acto do governo de Lenin», crê Richard Pipes,    trouxe maior sofrimento à população geral, as chamadas «massas», do que a profanação das suas crenças religiosas, o encerramento dos seus lugares de culto e os maus tratos infligidos ao clero.  A par de qualquer outra reunião de duas ou mais pessoas, o culto organizado era «considerado prova cabal de intentos contra-revolucionários». O brutal ataque à igreja, em particular à Igreja Ortodoxa Russa (atrasada, corrupta e fatalmente comprometida pelas suas ligações à polícia czarista) talvez fosse politicamente compreensível, daí as pilhagens e linchamentos, a caça aos padres, os julgamentos sumários, as execuções. Mas foi intenção extraordinária do regime aniquilar ta

A multiplicidade de milhares de línguas mutuamente ininteligíveis não é uma maldição - 1

Sustentei em After Babe l (1975) que a multiplicidade de milhares de línguas mutuamente ininteligíveis outrora faladas nesta Terra - e das quais muitas desapareceram hoje, ou se encontram em vias de extinção - não é, como as mitologias e alegorias do desastre entendem, uma maldição. São, pelo contrário, uma bênção de um motivo de regozijo. Cada uma, entre todas as línguas, é uma janela que abre sobre ser, sobre a criação. Uma janela como nenhuma outra. Não há línguas «menores», por reduzido que seja o seu quadro demográfico ou o seu meio. Certas línguas faladas no Deserto do Calahari traçam ramificações do conjuntivo mais numerosas e mais sutis do que as que encontramos em Aristóteles. As gramáticas hopi possuem cambiantes temporais e de movimento que se conjugam melhor com a física da relatividade e da indecidibilidade do que os nossos próprios recursos indo-europeus e anglo-saxónicos. Graças às raízes e ao desenvolvimento culturais e psicológicos incorporados no seu interior - raízes

Uma falta de curiosidade selectiva, um quebra-cabeças iniciado por auto-hipnose

Wilson não se deixou seduzir por Estaline por muito tempo, mas nunca renegou a pureza essencial de Outubro. Por isso desempenhou o seu papel na grande degradação intelectual. É frequente aduzir-se certas condições históricas para explicar esta degradação. São elas: a ferida geracional deixada pela Primeira Grande Guerra (guerra convincentemente apontada como «imperialista», portanto, capitalista), a Grande Depressão de 1929-34, o advento do fascismo e depois do nazismo (e o envolvimento de ambos na Guerra Civil de Espanha) e, mais tarde, a força moral das baixas russas na Segunda Guerra Mundial. Mas o facto é que, a despeito «das provas cada vez mais volumosas e insofismáveis» do contrário (como escreveu o meu pai nos meados dos anos cinquenta), a URSS continuou a ser considerada fundamentalmente progressista e benigna; e o erro resistiu até meados dos anos setenta. O que era isto? Do nosso ponto de vista actual, parece o contágio de uma falta de curiosidade selectiva, um quebra-cabe

O alimento dos corvos: Fé - 3

Como é que Deus alimenta as aves? A resposta é que ele não as alimenta! Ou pelo menos de uma forma directa. Não devemos imaginar Deus a alimentar as aves, como alimentamos os nossos animais de estimação em casa, oferecendo-lhes comida dada à mão ou num prato. Não! Jesus foi um atento observador da natureza. Ele sabia que as aves se alimentam sozinhas. Umas são insectívoras. Outras comem bagas, sementes ou fruta. Umas são carnívoras, outras são piscívoras, enquanto ainda outras são necrófagas, predadoras ou piratas. Umas sugam o néctar das flores; outras alimentam-se de lagartas e até mesmo de caracóis! Então que quis Jesus dizer? Ele quis dizer que Deus alimenta as aves indirectamente. Eu fornece-lhes os meios com os quais se alimentam. Mas têm de procurar a sua comida. Como cantou o salmista a Deus: «Todos esperam de ti que lhe dês comida a seu tempo. És tu que lhes dás a comida que eles recolhem...» Numa passagem paralela, Lucas, no seu evangelho regista, em que Jesus disse, não qu

O alimento dos corvos: Fé - 2

Primeiro, Jesus não estava a proibir a prudência e a previsão. A tradução da conhecida Versão Autorizada «não pensem no amanhã» é profundamente enganadora. O que Ele disse foi: «não tenham pensamentos ansiosos» ou (NIV) «não fiquem preocupados». Claro que devemos pensar no futuro. A própria Bíblia nos exorta a fazê-lo. A razão de devermos imitar o comportamento das formigas é o facto de elas armazenarem provisões no Verão. De facto, algumas aves que fazem o mesmo. Os pica-paus da bolota, da Califórnia, gostam de armazenar bolotas nos orifícios de árvores ou de postes de telefone e os picanços aprovisionam as suas despensas empalando insetos em espinhos. A instrução de Paulo a Timóteo é similar a esta: «Quem não se preocupa com os seus familiares e mais ainda com os da sua casa, renega a sua fé e é pior do que um descrente». Eis uma garantia bíblica para um seguro de vida ou para um meio equivalente de poupar para o futuro. Jesus é contra a preocupação não contra a prudência. A Fé em De

O alimento dos corvos: Fé - 1

A primeira lição que as aves nos ensinam é a fé, ou seja, confiar em Deus em todas as coisas, confiar que ele suprirá todas as nossas necessidades. Não precisamos de nos preocupar, disse Jesus, quanto ao que havemos de comer ou beber para permanecermos vivos. «Olhai para as aves do céu, que nem semeiam nem segam, nem juntam em celeiros; e vosso Pai celestial as alimenta. Não tendes vós muito mais valor do que elas?... Homens de pouca fé!» Talvez conheçam a «versalhada» (dificilmente poderia ser considerada poesia) que regista uma conversa entre um pisco e um pardal:  Said the robin to the sparrow - Disse o pisco ao pardal:  «I should really like to know - Eu gostava mesmo de saber  Why these anxious human beings - Porque é que os seres humanos  Rush about and worry so - Vivem tão ansiosos e apressados.  Said the sparrow to he robin - Disse o pardal ao pisco:  Friend, I think it must be - Amigo, acho que deve ser.  They have no heavenly Father - Por não terem um Pai celeste  Such as ca

Divisões que trazem conforto

Quanto ao meu intenso empenho em nunca ter qualquer contacto com os Eldila , não estou bem certo de poder fazer os leitores compreendê-lo. Era algo mais que um prudente desejo de evitar criaturas diferentes da nossa espécie, muito poderosas e muito inteligentes. A verdade é que tudo o que ouvir a respeito deles levava a ligar duas coisas que a mente de cada um de nós têm tendência a manter separadas, e essa ligação produzia um certo choque. Temos tendência a pensar acerca de inteligências não humanas em duas categorias distintas, que rotulamos respectivamente «científicas» e «sobrenaturais». Numa certa disposição de espírito, pensamos nos marcianos do Sr. Wells (muito pouco parecidos com os verdadeiros naturais de Malacandra, diga-se de passagem) ou nos seus selenitas. Noutra disposição de espírito totalmente diferente, divagamos sobre a possibilidade de existirem anjos, fantasmas, fadas e coisas assim. Mas no preciso momento em que somos obrigados a reconhecer uma criatura de qualquer

A sós comigo sou capaz

O isolamento talhou-me à sua imagem e semelhança. A presença de outra pessoa - de uma só pessoa que seja - atrasa-me imediatamente o pensamento, e, ao passo que no homem normal o contacto com outrem é um estímulo para a expressão e para o dito, em mim esse contacto é um contra-estímulo, se é que esta palavra composta é viável perante a linguagem. Sou capaz, a sós comigo, de idear quantos ditos de espírito, respostas rápidas ao que ninguém disse, fulgurações de uma sociabilidade inteligente com pessoa nenhuma; mas tudo isso se me some es estou perante um outrem físico, perco a inteligência, deixo de poder dizer, e, no fim de uns quartos de hora, sinto apenas sono. Sim, falar com gente dá-me vontade de dormir. Só os meus amigos espectrais e imaginados, só as minhas conversas decorrente em sonho, têm uma verdadeira realidade e um justo relevo, e neles o espírito é presente como uma imagem num espelho. O Livro do Desassossego  49 Fernando Pessoa  1935 dC  Editora: Revista Visão

A morte segundo um profissional do ramo

- Sr. Barlow, o senhor tem medo da morte. - Não, garanto-lhe. - É um instinto natural, Sr. Barlow, tremer perante o desconhecido. Mas, se discutir aberta e francamente o assunto, removerá as ideias mórbidas. É essa uma das coisas que os psicanalistas nos ensinaram. Expomos os tenebrosos medos à clara luz do dia vulgar do homem não menos vulgar, Sr. Barlow. Verifique que a morte não é uma sua tragédia particular, mas o que cabe a todos os homens. Como Hamlet tão bem escreveu: “Conhece que a morte é comum; tudo o que vive tem de morrer”. - Talvez acho que é mórbido e até perigoso pensar neste tema, Sr. Barlow; mas a investigação científica provou o contrário. Muitas pessoas são as que deixam a sua energia vital esmorecer prematuramente e diminuir a sua capacidade de ganhar a vida apenas por medo da morte. Removendo tal medo aumentam efectivamente as possibilidades de vida. Escolha agora, de boa saúde e serenamente, a forma de preparação final que deseja, pague-a enquanto pode pagá-la, li

Morrer acautelado

 - Agora uma das nossas caracterizadoras está à sua espera para colher os seus Dados Essenciais, mas antes de nos separarmos não quererá interessar-se pelos nossos Contratos Antes de Tempo? - Tudo o que respeita aos Prados Sussurrantes me interessa, mas talvez esse aspecto menos do que os outros. - Os benefícios do plano são duplos - falava pelo livro, numa espécie de vingança -, financeiros e psicológicos. O senhor está agora a aproximar-se da sua fase óptima de rendimento. Sem dúvida que está tomando várias providências concernentes ao seu futuro: investimentos, seguros, etc. Espera passar em segurança os seus anos de declínio, mas já atentou nos trabalhos que pode acumular sobre os que lhe sobrevivem? No mês passado, Sr. Barlow, um casal veio consultar-nos acerca dos Contratos Antes de Tempo. Eram cidadãos de destaque, na força da vida, com duas filhas cuja feminilidade começava agora a brotar. Ouviram os pormenores todos, ficaram bem cientes, e disseram que voltariam dias depois pa

Papel da dor

Filme: Shadowlands

Mortos vivos como na força da vida

- Poderá ter estranhado um pouco, Sr. Barlow, ver-se tão inesperadamente em face de um Ente Querido.  - Confesso que sim.  - Mas no dia parecer-lhe-á inteiramente diferente. A despedida é uma muito, muito grande fonte de consolações. Muitas vezes os Entes Saudosos viram pela última vez o Ente Querido no leito de dor, rodeado por todos os chocantes e concomitantes adereços de um quarto de doente ou de um hospital. Aqui vêem-no como os conheceram na força da vida, transfigurados em paz e felicidade! Nos funerais apenas têm tempo de um último olhar quando desfilam. Aqui, na Sala da Sesta, podem demorar-se o tempo que quiserem para que o espírito fotografe uma derradeira memória bela.  Ela falava - observou - parte pelo livro, segundo os termos do Sonhador, parte na sua própria linguagem viva. Estavam na recepção; e falava vivamente: - Bem, parece-me que lhe tirei quanto precisava, Sr. Barlow, a não ser a sua assinatura no pedido, e um depósito.  Dennis viera preparado para isto. Era um do

Se Deus voltasse à Terra

Artista: Louis CK

Palavra «coração» em japonês

Em japonês, a palavra «coração» tem um significado mais amplo, abarcando não só os sentimentos como as áreas do conhecimento e a vontade, incluindo assim conceitos como «pensamento», «mente», «alma» e «espírito». (Nota das Tradutoras)  O Impiedoso País das Maravilhas e o Fim do Mundo [Sekai no owari to hādo-boirudo wandārando] Página 88  Haruki Murakami  1985 dC Editora: Casa das Letras

Todos nós somos hóspedes da vida

A própria Diáspora vive ameaçada. Referi-me às perdas constantes causadas pela assimilação e pelos casamentos mistos. Mas creio intensamente que para o judeu fora de Israel, para uma certa proporção de judeus fora de Israel, a sobrevivência se apresenta como uma missão. Em vários pontos fundamentais da lei mosaica e da exegese talmúdica, o judeu é ensinado a dar as boas-vindas ao estrangeiro. Nunca deverá esquecer que ele próprio foi um estrangeiro, um estranho na terra do Egipto. Que também ele foi um sem eira nem beira e um refugiado numa terra que o recebia sem hospitalidade. A minha convicção é que o judeu da Diáspora deve sobreviver a fim de ser um hóspede entre os homens . Todos nós somos hóspedes da vida, lançados nela independentemente da nossa inteligência e da nossa vontade. Hoje estamos a tomar sombriamente consciência de que somos os hóspedes de um planeta vandalizado. A menos que aprendamos a ser hóspedes uns dos outros, a humanidade sucumbirá na destruição mútua e no ódio

Tirarei o coração de pedra e darei um coração de carne

Dize, portanto, à casa de Israel:  Assim diz o Senhor Jeová: Não é por vosso respeito que eu faço isto, ó casa de Israel, mas pelo meu santo nome, que profanaste entre as nações para onde vós fostes. E eu santificarei o meu grande nome, que foi profanado entre as nações, o qual profanastes no meio delas; e as nações saberão que eu sou o Senhor, diz o Senhor Jeová, quando eu for santificado aos seus olhos. E vos tomarei dentre as nações, e vos congregarei de todos os países, e vos trarei para a vossa terra. Então, espalharei água pura sobre vós, e ficareis purificados; de todas as vossas imundícias e de todos os vossos ídolos vos purificarei.  E vos darei um coração novo e porei dentro de vós um espírito novo; e tirarei o coração de pedra da vossa carne e vos darei um coração de carne. E porei dentro de vós o meu espírito e farei que andeis nos meus estatutos, e guardeis os meus juízos, e os observeis. E habitareis na terra que eu dei a vossos pais, e vós me sereis por povo, e eu vos se

Transformou os judeus em homens comuns

Essencialmente sem poder durante cerca de dois mil anos, os judeus no exílio, nos ghettos , rodeados pela tolerância equívoca das sociedades gentias, não estavam em posição de perseguir outros seres humanos. Não podiam, fosse por que justa causa fosse, torturar, humilhar ou deportar outros homens e mulheres. Tal foi a nobreza singular dos judeus, uma nobreza que me parece muito maior do que qualquer outra. Para mim é uma verdade axiomática que seja quem for que torture outro ser humano, ainda que sob a pressão da necessidade militar e política, seja quem for que sistematicamente humilhe ou deixe sem o seu lar outro homem, mulher ou criança, degrada o núcleo essencial da sua própria humanidade . O imperativo da sobrevivência, as ambiguidades éticas da instalação no que era a Palestina (por meio de que sofística um israelita não-crente e não-praticante se autoriza a invocar a promessa de Deus a Abraão?) forçaram Israel a torturar, a humilhar, a expropriar - ainda que muitas vezes em meno

Efeitos do desemprego

Série: Lodge 49 Argumento: Jim Gavin 2019 dC

Os judeus no Estado de Israel

E, contudo, descubro-me a perguntar de novo, movido por um carácter de urgência crescente, o que poderá tornar plausível, o que poderá justificar o facto decididamente fanático que suscitou a interrogação inicial deste capítulo: porque continuam a existir judeus? O Estado de Israel fornece uma resposta triunfante, e por vezes triunfalista. Uma fénix renasce das cinzas, mas com garras de aço. O seu nascimento, a sua sobrevivência perante um cerco de inimigos mortais são um milagre. Do mesmo modo que o desbravamento da terra, pedra a pedra, a fundação de uma comunidade moderna, democrática e com padrões de instrução elevados, a sua capacidade de integrar hostes sucessivas de imigrantes. Cada judeu tem hoje na terra um lugar de refúgio do assegurado. Tudo isto são prodígios sem paralelo efectivo em toda a história. Israel assinala um milagre ao mesmo tempo antigo e sem precedentes no destino dos judeus, e nas suas possibilidades de sobrevivência. Mas, para existir, Israel teve de regenera

Uma metáfora

Filme: O Carteiro de Pablo Neruda [Il Postino] 1994 dC

Pressão de grupo na condenação de armas bacteriológicas

Entrado de fresco na redacção de The Economist , em Londres, vira-me encarregado de cobrir uma sessão pública nos cavernosos paços municipais de St. Pancras. A sessão era um comício de protesto contra a intervenção anglo-americana na Guerra da Coreia. O recinto estava a apinhado. O presidente da mesa, que era um conhecido publicista de esquerda e companheiro de jornada apresentou Joseph Needham . E levantou-se então uma figura de cabelos brancos, um tanto leonina. Apresentou-se como titular da cátedra William Dunn de Microbiologia na Universidade de Cambridge como testemunha directa do que estava a passar-se tanto na China como na Coreia do Norte. Insistiu no seu compromisso de certo modo sagrado de cientista de destaque internacional com a verificação empírica e experimental dos factos. A seguir mostrou ao auditório um cartucho de projéctil vazio. Declarou ao auditório que aquele objeto sinistro era uma prova irrefutável do uso de armas bacteriológicas pela artilharia americana. Os e

Cilindro compressor dos bons sentimentos

Filme:  Esplendor [Hikari] Argumento: Naomi Kawase 2017 dC

Um grande conhecimento nos mistérios evangélicos

(...)  Fiel - Dizei agora qual é o segundo ponto com que demonstrais a existência da obra da graça no coração.  Eloquente - Um grande conhecimento dos mistérios evangélicos.  Fiel - Deveis pôr esse em primeiro lugar, mas, seja em primeiro ou em segundo, é sempre falso, porque podemos facilmente ter muitos conhecimentos evangélicos e não termos a obra da graça nas nossas almas. Mais, pode um homem possuir toda a ciência, e, apesar disso, não ser coisa alguma, e, portanto, não ser um filho de Deus . Quando Cristo disse: «Sabeis todas estas coisas?», e os discípulos responderam: «Sim», ele acrescentou: «Bem-aventurados sois se as fizerdes» . Ele não bendisse o mero conhecimento mas a sua colocação em acção. Pois não é um conhecimento que é atendido com a realização de «Aquele que conhece a vontade do seu mestre, e não o faz» . Um homem pode ter o conhecimento de um anjo, e não ser sequer cristão. É o fazer que agrada a Deus. Não que o coração possa ser bom sem conhecimento. Há dois tipos

Só Ele e eu somos os mesmos

Como na melodia que se vai repetindo em variações, reconheço o Deus da minha intimidade desde criança como a presença mais constante na minha vida.  Todas as células do meu corpo se substituem e já nenhuma existe de quando, pela primeira vez, terei orado. Ainda assim, aqui estou e aqui Ele está. Só Ele e eu somos os mesmos.  A memória desvanece-se, as certezas cortam-se e resvalam para a berma do caminho. As ações comprometem-se no seu momento e são substituídas por outras. E, no final do dia, quando me deito, encontro-me com Ele, ambos adornados de um silêncio pristino.  Aí estou eu, chegado de mais uma jornada, preparado para fechar a janela sobre o dia que passou e Ele recebendo-me, preparado para me ouvir ou só para me acenar o cuidado da sua evidência.  Digo de novo, tal como a sua presença se renova, olhe eu para onde olhar, como na melodia que se vai repetindo em variações, reconheço o Deus da minha intimidade desde criança como a presença mais constante na minha vida. Isto é in

Clamar contra o pecado ou aborrecer o pecado?

Fiel - Eis a razão porque a princípio me agradou muito a sua companhia, e agora já me aborrece. Como nos veremos livres dele?  Cristão - Segue os meus conselhos, e se fizeres o que te digo, também ele se aborrecerá de ir ao teu lado, excepto se Deus tocar no seu coração e o converter.  Fiel - Que hei-de fazer?  Cristão - Ouve: aproxima-te dele, fala-lhe a sério sobre o poder da religião. Quando ele tiver aprovado as tuas palavras, o que não deixará de fazer, pergunta-lhe directamente se isso é o que ele pratica no seu coração, na sua casa e na sua vida. Então, Fiel aproximando-se outra vez de Eloquente, perguntou-lhe: «Então, que tal ides agora?»  Eloquente - Vou bem; mas julgava que teríamos conversado mais.  Fiel - Conversaremos agora. E visto que deixastes a mim a escolha do assunto, proponho este: Como se manifesta a graça salvadora de Deus, e quando existe no coração do homem?  Eloquente - Quereis dizer que vamos falar acerca do poder das coisas espirituais. O assunto é excelente

O que fazes quando as letras não estão a aparecer?

Dear Marko,   In my experience, lyrics are almost always seemingly just not coming. This is the tearful ground zero of song writing — at least for some of us. This lack of motion, this sense of suspended powerlessness, can feel extraordinarily desperate for a songwriter. But the thing you must hold on to through these difficult periods, as hard as it may be, is this — when something’s not coming, it’s coming. It took me many years to learn this, and to this day I have trouble remembering it.  The idea of lyrics ‘not coming’ is basically a category error. What we are talking about is not a period of ‘not coming’ but a period of ‘not arriving’. The lyrics are always coming. They are always pending. They are always on their way toward us. But often they must journey a great distance and over vast stretches of time to get there. They advance through the rugged terrains of lived experience, battling to arrive at the end of our pen. In time, they emerge, leaping free of the unknown — from me

Arte feia, engenharia bonita

Vimos que desde Rosseau se estabeleceu a dicotomia entre natureza e liberdade. A natureza passara a representar o determinismo, a máquina, com o homem na desesperançosa situação de ser absorvido pela máquina. Então, no andar superior, vemos o homem lutando pela liberdade. A liberdade que era buscada era uma liberdade absoluta, sem limitações. Não existe Deus, nem mesmo um universal, a limitá-lo, de sorte que o indivíduo procura expressar-se com total liberdade e, todavia, ao mesmo tempo, sente a condenação de ser absorvido na máquina. Esta é a tensão do homem moderno.  O campo da arte oferece uma vasta variedade de ilustrações desta tensão, tensão que, por sua vez, proporciona uma explicação parcial para o fato curioso de que muita da arte contemporânea, como expressão própria do que é o homem em si, é feia. Ele não o sabe, mas está expressando a natureza do homem decaído que, como ser criado à imagem de Deus é maravilhoso; todavia, em sua presente condição é decaído. No esforço que o

Que valores essenciais abriremos mão nesse processo?

“A misericórdia é um valor que devia estar no cerne de qualquer sociedade funcional e tolerante. A misericórdia reconhece que somos todos imperfeitos e, ao fazê-lo, permite-nos respirar e sentir-nos protegidos. Sem misericórdia, uma sociedade perde a sua alma e devora-se a si mesma”.  “Contudo, a misericórdia não é um dado adquirido. É um valor que temos de alimentar e procurar”, afirma, defendendo a importância de “cometer erros, corrigi-los, ousar duvidar e, pelo caminho, descobrir ideias novas e mais avançadas. Sem misericórdia, a sociedade torna-se inflexível, medrosa, vingativa e sem sentido de humor”.  Sobre a “cancel culture”, ou seja, a negação da validade da obra de um artista reprovado pelos seus atos ou opiniões, Nick Cave acredita que é “a antítese da misericórdia. O politicamente correto tornou-se a religião mais infeliz do mundo. Em tempos uma tentativa meritória de reimaginar a nossa sociedade de forma mais justa, agora apresenta todos os piores aspetos que a religião te

No meio disto, havia as explosões de papoilas da Califórnia

No meio disto, havia explosões de papoilas da Califórnia. Estas têm cor quente - não laranja, nem ouro, mas se o ouro fosse líquido e emitisse vapor, esse vapor dourado seria a cor das papoilas.  A Leste do Paraíso [East of Eden]  Página 10 John Steinbeck  1952 dC  Editora: Livros do Brasil

Revelação - apenas a Escritura

Os evangélicos devem observar, neste ponto, que a Reforma afirmou “a Escritura somente”, e não “a Revelação de Deus em Cristo somente”. Se não temos das escrituras o mesmo conceito que tiveram os Reformadores, não contamos com o real conteúdo na palavra “Cristo” e esta é a tendência moderna na teologia. A teologia moderna usa o termo sem o conteúdo porquanto concebe um “Cristo” inteiramente alienado das Escrituras. A Reforma, porém, seguiu o ensino do próprio Cristo, vinculando a revelação que fizera de Deus com a revelação escrita, a Escritura.  A Morte da Razão [Escape From Reason]  Página 19  Francis Schaeffer  1968 dC  Editora: Aliança Bíblica Universitária do Brasil

O amor vivo é uma coisa cruel e assustadora

- Está a falar com franqueza? Está bem, depois desta sua confissão acredito que é sincera e tem um bom coração. Mesmo que não chegue à felicidade, lembre-se sempre de que está no bom caminho e tente não se desviar dele. O principal é evitar a mentira, qualquer mentira, sobretudo a mentira a si mesma. Esteja de olho nas mentiras que diz, não descure a atenção delas hora a hora, minuto a minuto. Evite também o desgosto pelos outros e por si mesma: o que lhe parece repugnante no seu íntimo purifica-se com o próprio facto de ter reparar nisso. Evite também o medo, embora o medo seja apenas uma consequência da mentira. Nunca desanime com a sua própria fraqueza na busca do amor, e nem sequer tenha muito medo dos seus procedimentos menos bons. Lamento não poder dizer-lhe nada mais consolador, porque o amor vivo, em comparação com o amor sonhado, é uma coisa cruel e assustadora. O amor dos sonhos anseia por uma obra rápida, satisfação imediata e aos olhos de todos. Aqui, é verdade, chega-se ao

Humanidade em geral e pessoas em particular

Aquilo era um ataque da mais sincera autoflagelação e, ao acabar, olhou para o Stárets com o mais resoluto olhar de desafio.  - Tal qual um médico me confessou a muito - observou o Stárets . - Era um homem já de idade e com uma inteligência incontestável. Falava do mesmo modo sincero, embora com ironia, mas uma triste ironia. Gosto da humanidade, dizia ele, mas eu próprio me admiro: quanto mais gosto da humanidade em geral, menos gosto das pessoas em particular, isto é, das pessoas em separado, das pessoas concretas. Nos meus sonhos, dizia ele, chego muitas vezes as ideias apaixonadas de servir a humanidade e, se calhar, seria mesmo capaz de subir ao Calvário pelas pessoas se de repente isso fosse necessário; ao mesmo tempo digo-lhe sou incapaz de conviver com alguém no mesmo quarto durante dois dias, digo por experiência. Mal alguém fica perto de mim, logo a sua personalidade me oprime o amor próprio e me constrange a liberdade. Sou capaz de ganhar ódio, de um dia para o outro, a melh

Astronómicamente astrónomos

Está certo que, como disse a outro um certo cientista "astronomicamene falando, o homem é infinitamente pequeno". "É verdade", respondeu o seu colega; "só que, astronomicamente falando, o homem é que é o astrónomo". Ouça o Espírito, Ouça o Mundo [The Contemporary Christian] página 40 John Stott 1992 dC Editora: ABU Editora

Amor vivo? Exijo imediatamente o pagamento.

- Amor vivo? Esta é uma questão e que questão! Veja: amo tanto a humanidade que às vezes, imagine, sonho abandonar tudo, tudo o que tenho, abandonar a Lise e ir servir como enfermeira. Fecho os olhos, penso e sonho, e nesses instantes sinto em mim uma força invencível. Não haveria feridas, não haveria chagas purulentas que me assustassem. Faria as ligaduras e limparia as feridas com as minhas próprias mãos, seria a enfermeira de vela para todos esses sofredores, estou pronta a beijar essas chagas...  - Já não é mau que a sua mente sonhe com isso e não com outra coisa. Pode mesmo acontecer que a senhora venha realmente a fazer alguma boa acção.  - Sim, mas por quanto tempo aguentaria eu essa vida? - continuava a senhora com ardor, como em frenesi - É esta a questão principal! É a mais torturante das minhas questões. Fecho os olhos e pergunto a mim própria: aguentarias muito tempo nesse caminho? E se o doente a quem lavas as chagas não te responder logo com a gratidão mas, pelo contrário

Declaram que não são compreendidos

Também às vezes, quando o mestre espiritual, isto é, o confessor ou superior, não aprova o seu espírito e a sua maneira de agir, porque querem que se estime e se louve as suas obras, declaram que não são compreendidos. Segundo eles esse director não é um homem espiritual, dado que não aprova a sua conduta e não se presta a aceitar a sua maneira de ver. É por isso que logo concebem o desejo de ter um outro guia; tentam encontrar um que se acomode ao seu gosto; de facto, encontram normalmente aquele que eles julgam disposto a louvaminhar e estimar as suas obras. Fogem como da morte de quem, querendo repô-los no bom caminho, se oponha a tais obras: e acontece mesmo que, às vezes, lhe ganham a versão. Como são muito presumidos, fazem normalmente muitos projetos e agem pouco. Desejam algumas vezes que os outros conheçam o seu género de espiritualidade e a sua devoção, e movimentam-se muito para o efeito, soltam suspiros, tomam atitudes estranhas. Têm o hábito de expressar de vez em quando a

Sexualidade segundo um guião

Até mesmo por si só, uma palavra, um aglomerado de sons podem desencadear uma excitação sufocante (o célebre faire catleya de Proust). A imagem desdobra-se no interior do som. A masturbação tem, assim, a sua gramática muda. Dentro desta privacidade, contudo, nos recessos do mais íntimo, intervém instâncias públicas. O vocabulário erótico e sexual dos media , a gíria amorosa do cinema e da televisão, as vagas declaratórias da publicidade e no mercado de massa, estilizam, moldam segundo convenções o ritmo, o andamento, as componentes discursivas de milhões de parceiros sexuais. No mundo desenvolvido, com a sua pornografia corrosiva, são inumeráveis os amantes, particularmente entre os jovens, que «programam» o seu modo de fazer amor, façam-no conscientemente ou não, em termos semióticos pré-estabelecidos. O que deveria ser o mais espontaneamente anárquico, o mais individualmente revelador e inventivo dos encontros humanos, seguem em muito larga medida um guião . A última liberdade, a au

Gula na oração

Aqueles de que falamos agem do mesmo modo na oração. Imaginam que ela consiste inteiramente no prazer e na devoção sensível que aí possam encontrar. Tentam achar esse prazer, como se costuma dizer, à força de braços; cansam-se e escondem a cabeça inutilmente. Quando verificam que nada conseguiram, ficam totalmente abatidos; imaginam que nada fizeram. A sua pretensão levou-os a perderem a verdadeira devoção e o espírito e oração sobrenatural que consiste em perseverar na paciência e na humildade, na desconfiança de si mesmo e no desejo único de agradar a Deus. Também acontece que, quando não encontram prazer neste ou naquele exercício de piedade, sentem um desgosto extremo; sentem repugnância em se entregarem de novo a esse exercício e, às vezes, chegam ao ponto de o abandonar. São, como já dissemos, parecidos com crianças pequenas; não se movem nem actuam de acordo com a razão, mas de acordo com a sensualidade. Passam todo o tempo à procura e alegria e das consolações espirituais. Nunc

Gula nos exercícios espirituais

Por outro lado o Demónio seduz tão bem um grande número que os leva à gula, excitando os seus prazeres e os seus apetites. Esses iniciantes são incapazes de lhe resistir. Alteram a ordem que lhes é dada; aumentam -na, ou modificam-na porque a obediência neste ponto se lhes torna um jugo muito duro e demasiado estreito; alguns chegam mesmo a um tal extremo que, pelo simples facto de irem por obediência a certos exercícios de piedade, perdem o gosto e a devoção de os cumprir. Não tem outro gosto e outro desejo que o de seguir a sua própria inclinação. Por isso seria talvez melhor para eles se não cumprissem tais exercícios de piedade.  Vereis muitos deles insistindo junto dos seus mestres espirituais para obterem o que lhes agrada e, em parte à força, arrancam o seu consentimento. Quando não o conseguem, deixam-se cair na tristeza como crianças, ficam de mau humor e imaginam que não servem Deus quando não os deixam seguir os seus caprichos. Como estão apegados aos seus gostos e à sua pró

Há gente que é pessoa

Pelas minhas contas, temos: pessoas, gente, povo e humanidade. O pior são as pessoas, claro, e o melhor é a humanidade. As pessoas não usam setas no trânsito; a humanidade foi à Lua. A humanidade é tão digna que, muitas vezes, aparece grafada com h grande: a Humanidade. Isso nunca aconteceu às pessoas, e bem. Não faz sentido escrever que as pessoas deitam lixo para o chão (coisa que a Humanidade, aliás, nunca faria). As pessoas raramente merecem a honra da maiúscula. Em geral, são referidas no fim da conversa, em tom de lamento, "Realmente, as pessoas...", e sempre com p pequeno. A gente talvez esteja num patamar acima, mas não muito. Há gente muito estúpida. O que é normal, dado que a gente costuma ser formada por muitas pessoas. Mas, apesar de tudo, às vezes é possível confiar na gente, e até desejar combinar um programa com ela, como fica claro na frase: "Então, gente, vamos sair?" Um convite que, não por acaso, nunca é feito às pessoas. O povo já é outra coisa

O privilégio do exílio

Todos nós admiramos e respeitamos um adversário ou inimigo político de um regime opressor e que tivesse por isso de se exilar. Mas só se lhe reconhecemos o privilégio de ter direito a isso como às classes favorecidas a vivenda ou o automóvel. Que diríamos de um simples cavador que também se arrogasse a importância de se exilar? Pensar  Página 179  Vergílio Ferreira  1992 dC  Editora: Bertrand

A primeira pedra do que és

Quase tudo o que vais sendo vem no impulso que te move. Não apenas quando a cólera é esse impulso, ou o disparate que se te adianta, ou um sentimento qualquer que é de mais. Mesmo a arte, o pensar, o escrever. Porque o todo que em ti resulta, vem da pedra fundamental que para ele escolheste ou te calhou para o início desse todo. Há um puzzle a organizar e que não sabes e está em ti. O resto vai sendo o que tu pensas ou vai pensando por si e o que te pertence não é bem o que supunhas que estava em ti, mas o que se revela desse estar. Depois só te resta o espanto ou a alegria ou o desapontamento de saberes o que não sabias que sabias ou não. Sê prudente e sem pressa. Vê se é possível escolheres a pedra sobre a qual erguerás o edifício. É por isso que há sempre uma cerimónia quando se põe a «primeira pedra», que é posta normalmente por uma «entidade», para que o seu prestígio contamine o edifício todo. E é por isso talvez também que essa «entidade» não está sempre à altura da cerimónia e

As palavras voam, o que fica?

Verba volant, scripta manent , dizia a sabedoria dos antigos. Era a chamada de atenção para a responsabilidade do que fica escrito, contra a volubilidade do falar. Mas era também, para o nosso repouso, a certeza de que os escritos estavam aí, a toda a hora da nossa visita. Simplesmente as palavras hoje não “voam” e permanecem também nos registos magnéticos e a vozearia multiplica-se assim até à surdez. E opostamente os escritos tendem a esquecer-se, sobretudo os dos jornais, que são uma variante do falatório. Além de que nos é possível e mais fácil substituir pelas palavras que voam a escrita que já não fazemos. Quantas cartas o telefone te dispensou de escrever? Mas o próprio livro é quase sempre para “ler mais tarde”. E os chamado “livros de cabeceira” não se entende que não sejam senão para facilitarem o sono. A estante ainda é um móvel de adorno e de prestígio como outros móveis de uso e distinção. Mas a sua utilidade pouco vai além disso. O homem simplificou-se com a atrofia das f